A Inteligência Artificial e Medicina… ao final de 2018

Fechamos o ano com um panorama de artigos e comentários sobre o desenvolvimento da Inteligência Artificial (IA) para a medicina e a área de saúde.

A Faculdade de Saúde Pública da USP lançou o curso “Inteligência Artificial em Saúde: o uso de machine learning”, de acesso livre e gratuito no Canal/USP do YouTube. https://www.youtube.com/playlist?list=PLAudUnJeNg4tvUFZ8tXQDoAkFAASQzOHm 

O professor Alexandre Chiavegatto descreve a realidade da IA hoje, no Laboratório de Big Data e Análise Preditiva em Saúde – LABDAPS. O grupo, com foco na saúde, desenvolve modelos de predição que ajudem na tomada de decisão diagnóstica, terapêutica e de políticas de gestão pública. Em suas palavras: “não é um modismo da mídia, não estamos falando de futuro…” 

Nas publicações com foco na medicina, quase todos os textos que impactaram ainda esperam um salto revolucionário na dinâmica do cuidado a partir das capacidades ampliadas da IA. No entanto, o que percebemos é que ainda nem há um consenso sobre o que se espera.

As capacidades exploradas da TI para a área de gestão financeira e administrativa ainda não encontraram a mesma correlação na área de gestão de dados clínicos, como nos registros eletrônicos de prontuário (EMR em inglês), por exemplo. Entre outros entraves, a grande variabilidade na qualidade e forma do relato médico impede uma padronização já exequível pelos algoritmos de Deep Learning.

Na prática clínica, o que se vem buscando, por enquanto, é eficiência no processo de decisão clínica¹; mas, até o momento, o que se vê em alguns estudos é que “a integração da IA ao fluxo de trabalho clínico tende a aumentar significativamente a carga cognitiva enfrentada pelas equipes clínicas levando a um maior estresse, menor eficiência e pior atendimento clínico”  https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/2718456

As pesquisas em torno da capacidade de diagnóstico de imagens na área de IA também são muito promissoras e muitos estudos vem ampliando esse campo. As imagens da retinopatia são um bom exemplo. https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/2588763?utm_campaign=articlePDF&utm_medium=articlePDFlink&utm_source=articlePDF&utm_content=jama.2018.18932  Causou forte impacto o comunicado de que essa tecnologia tornou-se a primeira regulamentação da FDA (agência norte-americana) para uma metodologia diagnóstica exclusiva de IA. https://www.eyeworld.org/first-artificial-intelligence-system-approved-fda-detect-diabetic-retinopathy

Na área da oncologia, estudo promissor avaliou acurácia da IA para screnning populacional do câncer de mama. http://annals.org/aim/article-abstract/2680054/automated-clinical-breast-imaging-reporting-data-system-density-measures-predict Na sensível área do diagnóstico do melanoma, vale a leitura dos comentários do onco-geneticista Siddhartha Mukherjee sobre a experiência de Sebastian Thrun, da Universidade de Stanford. A linha de pesquisa do professor Thrun compara os acertos da IA no diagnóstico de lesões malignas, com um banco de centenas de milhares de fotos de lesões de pele, a de um grupos de dermatologistas experientes. https://www.newyorker.com/magazine/2017/04/03/ai-versus-md

Essa questão nos interessa, particularmente, pelo anúncio da chegada desta tecnologia ao nosso país, um dos recordistas mundiais em câncer de pele. A possibilidade de utilização pelos hospitais de oncologia do nosso sistema de saúde foi anunciada pelo Dr. Jacob Scharcanski, pioneiro na área do processamento de imagens e professor do Instituto de Informática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em trabalho conjunto com a Universidade de Waterloo, no Canadá. http://forumsaudedigital.com.br/equipamento-que-utiliza-cameras-comuns-detecta-ate-99-de-chances-de-cancer-de-pele/?utm_source=akna&utm_medium=email&utm_campaign=SA%DADE+DIGITAL+News+-+17…

Um outro estudo deste ano, utilizou a IA para classificar tumores cerebrais. Diante da considerada variabilidade interobservador, no diagnóstico histopatológico dos cerca de 100 tipos de tumores que atingem o SNC, a técnica de classificação por DNA-methylation se mostra promissora no índice de acerto. E o interessante é a disponibilidade da ferramenta de forma gratuita on-line. https://www.nature.com/articles/nature26000

Essa fase em que vivemos de grandes possibilidade e descobertas, mas ainda com grau de incerteza de difícil mensuração, exige o permanente debate e a manutenção de linhas de pesquisas que sedimentem o conhecimento de fundo. No primeiro texto a que nos referimos, o autor relembra que os erros na utilização da IA na medicina tendem a ser mais destacados. Esse viés da nossa observação é facilmente reconhecido quando comparamos com a IA nos carros sem motoristas. Mesmo sabendo que, estatisticamente, são mais seguros, e sabendo de centenas e milhares de acidentes em veículos convencionais, um único acidente com um veículo dirigido por IA terá um forte impacto negativo para o uso desta tecnologia.

Na medicina não é diferente. O uso de protocolos e sistemas informatizados de revisão e vigilância tem sido defendido como uma arma promissora para a redução do erro médico. Mas e se o erro ocorrer nos processos da IA? A quem cabe a responsabilidade? O aspecto ético (mais propriamente do Biodireito) da utilização declarada da IA em medicina já tem discutido por muitos autores; em forma de ficção futurista, um artigo tenta buscar normas para responsabilização do erro do médico da IA. https://medicalfuturist.com/could-you-sue-diagnostic-algorithms-or-medical-robots-in-the-future

Nesse panorama de 2018, prefiro fechar esse texto com os comentários de Abraham Verghese, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Stanford. Lembrava-me de um belo artigo seu, “A touch of sense”, escrito há quase dez anos², onde ele descrevia sua experiência com os pacientes na epidemia de SIDA no final do século XX. Sabendo que pouco podia fazer por eles, e sem grandes dúvidas na evolução dos casos, ele percebia a importância que os pacientes davam ao exame clínico. Os médicos que examinam pacientes conseguem ‘sentir’ o texto de Verghese, quando ele compara aqueles tórax caquéticos, “esqueletos cobertos de pele”, a cestos de vime, e descreve o valor o exame clínico e toque do médico tem para os pacientes.

Dez anos depois, em texto de janeiro deste ano, Verghese explora o tema da IA na medicina junto a dois outros professores da mesma faculdade. https://jamanetwork.com/journals/jama/article-abstract/2666717  Como outros, reconhece o importante valor da EMR com uma “eficiente ferramenta administrativa de negócios e faturamento, e […] poderoso banco de dados para pesquisa”, mas na linha de frente da prática diária ainda um instrumento insatisfatório. E com perdas na relação médico-paciente e nos ritos sociais entre médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde. Cita como exemplo o tratamento pela IA das imagens na radiologia, que extinguiu com as sessões que congregavam todas as especialidades para discutir os pacientes.

Para ele, nada nos fez ainda ultrapassar a fase da previsão, para a da ação. Assim, “os médicos devem procurar uma parceria na qual a máquina preveja (com uma precisão comprovadamente maior), e o humano explica e decide a ação”. Como outros recursos do passado, a IA talvez deva permanecer apenas como um instrumento, cabendo ao humano o juízo do cuidar.

Estamos em 2018, até o momento se mantém assim.

 

Luiz Vianna

 

 

1- https://www.businessinsider.com/ibms-watson-may-soon-be-the-best-doctor-in-the-world-2014-4

2- Verghese, A. A Touch of Sense. Health Aff. Vol. 28 nº4, 1177-1182. 2009. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/19597219

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