A Medicina Baseada na Desconfiança II – por Fernando Telles

Os dados produzidos pela técnica da chamada Medicina Baseada em Evidência não são, necessariamente, limitadores da autonomia de decisão do médico.

Entendemos o raciocínio médico como fundamentado no modelo hipotético-dedutivo. Assim, o primeiro passo do processo diagnóstico é a construção de hipóteses. Estas advém tanto do conhecimento do médico a respeito das patologias, como da sua experiência pessoal vinda dos casos por ele acompanhados (a série temporal pregressa acumulada na experiência clínica). Muito do que chamamos “intuição” do médico experiente no diagnóstico de um caso individual é o bom uso metodológico que este faz desse conhecimento a priori, mesmo que não haja muita consciência disso por parte desse médico. O termo “intuição”, em filosofia, é policêmico, sabemos. Em Descartes, trata-se de uma “ideia clara e distinta” – verdadeira. Talvez a “intuição” do médico tenha menos o sentido cartesiano do que aquele proposto por Kant. Neste caso, de outro modo, tem-se a “intuição sensível”, isto é, a apreensão do mundo exterior com base nas funções subjetivas da sensibilidade, conceituadas pelas categorias da função intelectiva do entendimento. Karl Popper posteriormente irá usar essa ideia de Kant para transformar o tal “a priori transcendental” em hipóteses falíveis. Assim parece ser o raciocínio clínico: hipotético-dedutivo, mas nos moldes do falibilismo de Popper. Se isso é verdade, a MBE pode ser usada pelo médico como um valioso recurso a adicionar elementos organizados à sua série temporal pregressa.

Mas aqui a situação se torna espinhosa, pois há os problemas da QUALIDADE E DA HONESTIDADE INTELECTUAL DE CERTOS TRABALHOS que produzem os dados usados como evidência da MBE. Sabemos que estes, numa certa medida, são oriundos, inclusive, de pesquisas pseudocientíficas a serviço de interesses da indústria de insumos médicos. E mais: sabemos, ainda, que o discurso científico é suscetível de crítica racional mas que tal crítica é metodológica, apenas; esta não tem tanta sensibilidade para detectar fraudes. Isso dificulta, ainda mais, a avaliação da legitimidade cognitiva de determinados fatos eventualmente apresentados como “evidência”. Em todo caso, julgamos ter aqui uma questão fundamentalmente epistemológica, com implicações, inclusive, na própria formação do médico. Acho que este é um aspecto ético, no sentido popperiano do termo, para o qual talvez devamos dar uma maior atenção.

 

Fernando Telles

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