Ainda o estetoscópio

Fonte – pt.shopify.com

Ainda nos primeiros anos da minha formação profissional, conheci um médico que se diplomara na década de 1920, aluno de conhecidos nomes da nossa história médica, como Miguel Couto, Vieira Romeiro e outros. Ele clinicou até meados da década de 1980. Nunca usou um estetoscópio.
Foi um contato vivo e pessoal com um outro modelo de semiologia; vi os lenços bordados que ele colocava entre o tórax do paciente e seu ouvido na hora da ausculta. E também o livro francês com “As mil melhores fórmulas terapêuticas”, ainda do século XIX, pois ele aviava as próprias receitas. Componente por componente. Não conhecia nenhum medicamento pelos nomes comerciais que eu já começava a me acostumar na prática ambulatorial.
Anos mais tarde, a comparação entre esse lenço para a ausculta e o estetoscópio me foi útil para compreender a chegada de outros instrumentos no boom tecnológico do final do século XX. A crítica acadêmica, em grande parte, enxergou nisso o afastamento entre o médico e o paciente. A minha visão não era essa. Eu estava mais concordante com o diagnóstico de narcisismo contemporâneo, de comportamento individualista, tão bem dissecado por Lipovetsky em A Era do Vazio. O médico afastou-se do paciente, objetivando-o, mas enfim como outros profissionais e toda a sociedade vinha se mantendo na relação eu-outro.
Agora, a tecnologia chega ao mundo da informação. Com vários nomes, a mudança me parece noutro tom.
O artigo “Artificial Intelligence is the Stethoscope of the 21st Century” ( https://medicalfuturist.com/ibm-watson-is-the-stethoscope-of-the-21st-century?utm_source=welcomemail&utm_medium=email&utm_campaign=newsletter ) pretende acomodar o impacto da chegada da Inteligência Artificial (AI) na mesma categoria epistemológica que a chegada do estetoscópio. Afinal “levou algum tempo para que a comunidade médica aceitasse o estetoscópio. Também demorará um pouco para reconhecer I.A. como uma ferramenta de saúde” (em tradução livre). Assim, desde a história da descrição do instrumento por Laënnec, em 1819, até a longa e difícil aceitação pelos médicos, o texto vai correlacionando com o estranhamento que os Computadores Cognitivos estão causando na sua chegada à assistência ao paciente. Alguns médicos já se perguntam se não seremos substituídos no futuro.
O texto apresenta algumas estrelas do momento, como o Watson, da IBM, e o DeepMind, da Google. A abordagem é interessante e pensar nessa questão é imprescindível, porque nossa geração não terá um século para se adaptar a esse novo ‘instrumento’. O futuro é amanhã.
E qual a questão?
O texto caminha demonstrando que a IA vem como auxílio cognitivo, citando que os “centauros humanos” (homem+IA) tem melhores resultados nos acertos diagnósticos, quando comparados ao uso exclusivo de IA. Mas, isso não me parece uma lei da física, ou da cibernética. Nada impede que as deep-learning superem essa expectativa. Logo, o ponto central da discussão é que a função que a IA ocupa é na área cognitiva, de interpretação e decisão sobre os dados coletados. Na relação médico-paciente, ou sujeito-sujeito, ela não está no lugar instrumental do estetoscópio, ou de uma ressonância magnética. No meu entender, há uma sensível e fundamental diferença: é nela que está o pensar.
A relação será, então, IA-paciente. Não sendo o primeiro um sujeito, o que teremos é gestão de dados. Essa é a medicina que se aproxima. Para o bem ou para o mal, a medicina de dados será um tema frequente no nosso debate.

Luiz Vianna

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