De médicos e loucos, todos temos um pouco…

A revista científica britânica Nature publicou uma entrevista com a seguinte frase no título: “Medicamentos deveriam ser prescritos pelos médicos, não pelo presidente”(1). O entrevistado poderia ser algum pesquisador norte-americano, referindo-se a Donald Trump. No entanto, a fala é do professor do Instituto de Física da UFRJ e presidente da Academia Brasileira de Ciências, Luiz Davidovich. E ele se refere obviamente ao presidente Bolsonaro. Notadamente, foram os dois presidentes, de países populosos e com dimensões continentais, que se destacaram no noticiário ao dar suas opiniões leigas, mas com o status de sua autoridade, sobre como proceder no controle dessa pandemia e no tratamento da doença. Houve muito destaque, principalmente no que concordaram, em relação ao isolamento social e o uso do anti-malárico cloroquina e seu derivado. Indo além, Trump chegou a sugerir que se injetasse desinfetante pelos brônquios(2) daqueles que estivessem infectados, e hospitais em Nova Iorque e outras cidades logo relataram aumento nos números de casos de intoxicação pela ingestão de alvejantes, desinfetantes e outros produtos de limpeza de ambientes(3).

Davidovitch destaca que, no nosso país, a postura do presidente conduzindo e extrapolando o poder de sua autoridade para dentro da área técnica da medicina, nos levou à várias situações contraditórias no governo, derrubando dois ministros da saúde que eram da área técnica e a substituição interina por um general. O Ministério da Saúde lançou então uma norma técnica sobre o uso da cloroquina, inicialmente não assinada, mas que permaneceu sem a chancela do ministro militar mesmo depois do acerto(4).

Enfim, todos tem um pouco de médicos…

Seguindo assim, nesses últimos meses, temas que só víamos em discussões médicas invadiram os telejornais, as colunas da imprensa leiga, os grupos de mídia social. Nesse mundo, bem distinto do que tínhamos há pouco tempo, as informações sobre terapia, prevenção, medidas de vigilância sanitária circulam em todos os discursos; e são compartilhadas e comentadas com os mais variados graus de certeza por quase todos. Davidovich chama atenção para esse fato de que a ciência está em todo lugar na imprensa e pela presença de cientistas em vários debates populares não especializados; mas, ao mesmo tempo, ele destaca que isso tem convivido com posturas como o terraplanismo, o criacionismo, e a negação da mudança climática da atualidade.

Por outro lado, o posicionamento político ficou evidente entre os médicos e profissionais de saúde. Devo assumir que relato uma experiência pessoal. Mas de um número maior que uma centena… pois, desde o início da pandemia vinha observando a reação dos colegas em distintos grupos de mídia social: em ambientes do trabalho, ou em grupos ligados ao meio acadêmico, ou em um grupo com maior presença de profissionais que atuam na gestão de saúde. A impressão foi a mesma; a grande maioria não conseguiu seguir a orientação dos preceitos em que se supõe tenham sido acostumados na prática científica: refutar ou comprovar teorias, a partir de uma justificativa racional. Ficou mesmo muito evidente, nesses grupos de discussão, que a escolha do argumento passa antes pelo pertencimento a um determinado lado da discussão. Ou, como acertadamente pontuou o presidente brasileiro, em um de seus antológicos arroubos médicos: “Quem é de direita toma cloroquina, quem é de esquerda Tubaína”(5) . E foi exatamente assim que se comportaram muitos médicos, em suas declarações e postagens. Caçando em seus contatos e referências, argumentos e dados que justificassem a escolha de um dos lados. Petismo, bolsonarismo, esquerda, direita…Por trás da ciência, e antes de atingi-la, a ideologia. E, quando isso não bastou, ainda o amparo da fé. Feyerabend, na sua anarquia crítica ao consenso do método científico, já advertia que “os argumentos dificilmente afetam os fiéis – suas crenças têm uma base totalmente diferente”(6).

Saindo do território da razão científica, os médicos se aproximaram do conturbado bate-boca do senso comum. E o auxílio de Deus e da fé deve-se dar aos pacientes que necessitem de suporte em sua espiritualidade, não como justificativa para decisões clínicas.

Fora da razão, estamos todos um pouco loucos…

 

Luiz Vianna

 

  1. https://www.nature.com/articles/d41586-020-01506-2
  2. https://brasil.elpais.com/internacional/2020-04-24/trump-sugere-tratar-o-coronavirus-com-uma-injecao-de-desinfetante-ou-com-luz-solar.html
  3. https://www.nbcnewyork.com/news/local/nyc-poison-control-calls-for-bleach-lysol-double-after-trump-disinfectant-comment/2389593/
  4. https://oglobo.globo.com/sociedade/coronavirus/ministerio-volta-atras-divulga-protocolo-da-cloroquina-assinada-por-responsaveis-ministro-interino-nao-assina-documento-24438829
  5. https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/05/20/quem-e-de-direita-toma-cloroquina-quem-e-de-esquerda-tubaina-diz-bolsonaro.htm
  6. Feyerabend, P. A conquista da abundância: Uma história da abstração versus a riqueza do ser. Unisinos, 2006

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