Medicina no varejo, saúde no atacado

O filósofo Paul Ricouer, em texto antológico (1), defende que a prática da medicina contém em si três inescapáveis paradoxos.

O primeiro diz respeito ao paciente. Diz ele: “a pessoa humana não é uma coisa e, todavia, o seu corpo é uma parte da natureza física observável”. Nesse ponto, teríamos todo o corpo crítico de textos sobre a biomedicina e seus limites. Daquilo que fala sobre o poder sobre os corpos, e também de sua objetificação – ou reificação – na relação médico-paciente. A integralidade do sujeito que não deveria ser reduzida à sua dimensão anátomo-patológica. Mas, tampouco prescindir de considera-la. E o embate epistemológico da saúde mental no dualismo mente-corpo. Como superar a biologia?

Então, expandimos a visão para a coletividade com o segundo paradoxo: “a pessoa não é uma mercadoria, nem a medicina um comércio; mas a medicina tem um preço e tem custos para a sociedade”. E, juntamente com o terceiro paradoxo, abrangemos os dois precedentes: “o sofrimento é privado, mas a saúde é pública”.

Costumo utilizar essa chave para a leitura de questões relativas à medicina e sua inserção no amplo campo da saúde coletiva.

O ano de 2018 começou com o anúncio, em janeiro, da entrada da Amazon no sistema de saúde americano (2). A gigante varejista do mercado virtual se associou ao J P Morgan e ao fundo de investimentos Berkshire Hathaway. A ideia divulgada é reduzir os custos de saúde com melhora da entrega de serviços para os usuários.

Passamos o ano com o anúncio de vários novos modelos de gestão direta de saúde de seus empregados por grandes empresas como Microsoft (3) e Google (4). O ano termina, então, com outra notícia da chegada dos serviços médicos ao mercado varejista: a rede Walmart anuncia a primeira clínica de saúde mental alojada em um ambiente de varejo (5).

Essas duas notícias, vindas do maior mercado – literalmente – de saúde do mundo, nos dão um bom mote para a reflexão. O texto de Ricouer pode nos ajuda a pensar nesse modelo e considerar se estamos realmente ainda na vigência desses paradoxos.

O terceiro paradoxo ainda persiste?  Ou poderíamos dizer que a saúde pública estaria sendo assumida por monopólios de mercado no atacado, para cuidar do sofrimento no varejo?

E depois, o domínio da condução pelo preço e pelo custo, embutidos na questão do valor (6), já não estão nos conduzindo diretamente para o comércio da saúde como mercadoria?

Quanto ao primeiro inicial paradoxo: ainda há espaço, na quantificação plena da transformação da medicina digital, para um sujeito que escape aos limites de um conjunto de dados?

Luiz Vianna

 

1- Ricouer, P. Os Três Níveis do Juízos Médicos. Universidade da Beira Interior. Covilhã, 2010

2- https://www.cnbc.com/2018/01/30/amazon-berkshire-hathaway-and-jpmorgan-chase-to-partner-on-us-employee-health-care.html

3- https://www.healthcareitnews.com/news/microsoft-hires-two-healthcare-leaders-teases-future-projects

4- https://www.theverge.com/2018/11/9/18079420/google-health-care-strategy-fit-home-nest-deepmind-verily-ceo-geisinger

5- https://www.medscape.com/viewarticle/906664

6- http://www.huffingtonpost.com/entry/what-is-value-based-care_us_58939f9de4b02bbb1816b892

One Reply to “Medicina no varejo, saúde no atacado”

  1. Stefan Simoes

    A questão de uma clínica dentro de um walmart se equipara para mim às clínicas populares que tem crescido e inclusive estão presentes em alguns shoppings, como Plaza.
    Vai fazer compras? Aproveita e faz uma consulta baratinha…
    Nem vejo grandes problemas na presença de clínicas nestes locais.
    Me preocupa mais as ações globais: formação profissional, intermediação e saúde pública.
    Eu penso que: somos mais que miseráveis quando apresentamos nossos dados e resultados de saúde pública. E como se já não bastasse nossa miséria atual, não vejo quem e nem ambiente para discutir o que vem pela frente em termos de biotecnologia, I.A. e internet das coisas na saúde.
    Ou seja, nem se endireita o errado nem se prepara para o que virá.

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