O tempo da medicina virtual

Texto publicado originalmente no dia 30/01/2019, no site OutraSaúde https://outraspalavras.net/outrasaude/o-tempo-da-medicina-virtual/

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Nosso tempo será diferente. Deixará marcas na história. Pela própria forma e velocidade com que os fatos estão surgindo e embaralhando a nossa noção de tempo, nos atropelando.

‘As coisas não são assim!’ – É o que nos vem à mente.

‘Não eram.’ – Respondem os fatos.

Já se comparou a chegada da revolução da tecnologia virtual à descoberta do controle e uso da energia elétrica na virada do século XIX para o século XX. O mundo passou por uma mudança radical. A geração que mal acabara de aceitar a locomotiva à vapor assistiu a grandes transformações. Passamos décadas refletindo e discutindo essas mudanças de “paradigmas’.

Hoje, para dizer o mesmo, temos de mudar os modos e falar em disrupção. Não importa. Galileu e Einstein passaram por isso na ciência abstrata. Pasteur, Fleming e Blalock também, na nossa área.

A questão é que a mudança agora chegou em grande velocidade. Para nossa geração, ainda um problema, e muitos questionamentos. Mas para quem já fica na tela do smartphone enquanto os pais aproveitam o restaurante e, ao crescer, ingressa no curso de medicina da faculdade da Dell¹, muitas dessas questões nem existem.

O que nos remeteria, então, ao campo da moral. O que precisamos é saber o que ‘é’ ou ‘está sendo’, para dar uma resposta de como ‘deve ser’. Essa é uma das formas de nos posicionarmos frente aos fatos, que foi desenvolvida no raciocínio moral do escocês David Hume, no séc.XVIII.

O que mais tarde foi definido, no campo das discussões éticas, como Lei de Hume, é que não podemos derivar logicamente de algo que é, um dever ser. Ou, mais simplesmente, de fatos, não podemos tirar valores. Isso vem do hábito, da cultura, do nosso desenvolvimento ao longo da história. Os fatos da natureza não têm um valor moral. Um tsunami, um vulcão, uma queda de grande meteoro; nós que valoramos suas trágicas consequências.

Assim, vamos ter que construir, nem que seja contra a vontade de alguns, novos arranjos morais que justifiquem as mudanças que estão chegando e, a partir daí, definam novos marcos legais. O devemos ou podemos.

Há muito tempo usamos as formas disponíveis de contato com nossos pacientes, quando verdadeiramente desejamos ajudá-los. Orientamos e receitamos condutas terapêuticas por telefone, por exemplo, não obrigatoriamente um medicamento ou fármaco que necessitaria de receituário específico. As consultas e orientações por e-mail e pelo WhatsApp já estavam no domínio da decisão pessoal.

No entanto, causou tumulto nas redes e grupos sociais a recente divulgação do atendimento online, através da internet oferecido pela Rede Albert Einstein, de São Paulo. Sem entrar em outras discussões, como o caráter beneficente da instituição, que faz parte da rede de hospitais com tratamento fiscal diferenciado pelo governo federal²(!!), o serviço oferecido é apoiado em tecnologia de telemedicina.

Qualquer dispositivo com câmera, áudio e acesso à internet, como computadores, tablets, smart-TVs ou, mais propriamente, os smartphones, poderá acessá-lo. Estão sendo oferecidas consultas em várias especialidades médicas; das especialidades clínicas, até obstetrícia e… psiquiatria. O informativo avisa que não há vínculo ou pagamento por planos de saúde e cada consulta custa R$ 400, que podem ser pagos à vista ou em três vezes no cartão de crédito (apenas nesse momento deveríamos lembrar que a renúncia fiscal da área de saúde, na qual se insere esta instituição, retira em torno de R$ 30 bilhões ao ano do SUS³).

O Conselho Federal de Medicina chegou a responder diretamente “Com o objetivo de esclarecer informações publicadas recentemente nas redes sociais”, em boletim extraordinário (4); lembrando o Art.37 do Código de Ética Médica: “É vedado ao médico prescrever tratamento ou outros procedimentos sem exame direto do paciente, salvo em casos de urgência ou emergência e impossibilidade comprovada de realizá-lo, devendo, nesse caso, fazê-lo imediatamente após cessar o impedimento”. E já há um evento marcado pela entidade, a ser realizado em Brasília, no dia 7 de fevereiro. Será o II Fórum de Telemedicina e Informática em Saúde do CFM.

O que resultará de tudo isso? Ainda não sabemos com certeza; mas certamente também não irá durar por muito tempo. Serão discussões, embates entre entidades e interesses; interesses profissionais, interesses de mercado e intenções daqueles que regulam que estarão na balança, juntamente com os interesses e necessidades daqueles que são o foco da nossa atividade – os pacientes. Estes, no entanto, não guardam mais uma atitude puramente passiva aguardando essas decisões.

O desabrochar da autonomia como uma das correntes que se desenvolveu na ética no último século, trazendo a decisão do paciente para o mesmo pé de igualdade que as milenares ponderações de beneficência e não-maleficência, colocam o usuário do sistema de saúde como um forte elemento decisor de políticas públicas. Principalmente quando o conceito de autonomia é explorado pelo mercado, estimulando o consumo de insumos não-essenciais e esfumaçando os tênues limites entre desejos e direitos.

Então, é com esse cenário que estamos apenas começando a assistir a grandes mudanças.

São os nossos tempos. Chegando e já passando. Próximo!

 

Luiz Vianna

 

1- http://observatoriodamedicina.ensp.fiocruz.br/dell-medical-school-por-sergio-rego/

2- https://www.folhadelondrina.com.br/colunistas/claudio-humberto/hospitais-dos-ricos-tem-isencao-de-r-3-2-bilhoes-1025530.html

3- http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/7376-caminho-para-sus-ser-unico-e-universal-passa-pela-politica-e-pelo-fortalecimento-da-base-social-de-apoio

4- http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=28059:2019-01-29-15-13-33&catid=3

 

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