Porque defendemos o SUS – por Marcelo Magalhães

Tivemos uma semana extremamente profícua sob o ponto de vista da resistência ao retrocesso sistemático ao qual o país está submetido. E se a nossa perspectiva estiver correta, é possível que tenhamos acertado uma zona de tamanha eloquência, capaz de desafiar definitivamente o projeto liberal, que por sua estrutura sub-reptícia e sofisticada é muito mais poderosa, que a infantilidade tosca do Bolsonaro, que responde a esmo por não saber do que se trata.

O episódio da abertura da atenção primária à iniciativa privada naturalmente não foi gerado em um outono nebuloso, mas estava na lista entregue ao Paulo Guedes desde que se tornou o economista do candidato. Na verdade, era função do Mandetta, lobista histórico, que foi atropelado pela pandemia e recaiu. Embora também possa ter sido só uma cortina de fumaça, pois no mesmo dia, o executivo liberou milhões às indústrias automotivas, através de isenções fiscais, que apareceram como notas discretas no jornalismo da grande mídia, como é comum nas manchetes que pegam os grandes anunciantes.

Mas voltemos ao anúncio da privatização do SUS e mais importante, às reações criadas por este anúncio. Merecia uma pesquisa formal, mas na falta desta vamos citar a nossa percepção. Médicos que trabalham no serviço privado se manifestaram contra a privatização. Todos que trabalham no serviço público também foram contra. Praticamente não se viu quem se manifestasse a favor da privatização. Muita gente que se tratou no SUS e tem queixas, ainda assim foi a favor do SUS.

E o que será que despertou essa reviravolta na valorização de algo tão desgastado? Penso em algumas situações totalmente novas na experiência humana com a saúde, mas o que me chamou a atenção desde o início, e me parece que se concretizou para todos ao final do primeiro ciclo, é que a medicina curativa nada tinha a oferecer, e Ioannidis deixou isso muito claro desde as suas primeiras falas, restando as intervenções sanitárias e de cuidados como opções cruciais e definitivas. Ou seja, isolamento, máscaras, higiene associados ao acolhimento, conforto, controle dos sintomas, nutrição, apoio humano foi o que funcionou e salvou vidas na pandemia.

A grosso modo, os médicos na sua ânsia de provar seu poder, promoveram um espetáculo que variou desde o uso de drogas inúteis até a instalação de circulação extra corpórea para justificar seus altos honorários. Com a recuperação espontânea de quem usou drogas precocemente, até a obsessão terapêutica em quem já estava condenado ocupou entre uma live e outra o personagem mais patético de todo o contexto, mesmo porque muitos morreram ou perderam amados nessa confusão.

É importante chamar a atenção para a falência concomitante dos recursos tecnológicos tão bem explorados pelo mercado médico. Ao elegerem equivocadamente os ventiladores mecânicos como o grande salvador de vidas, na verdade interessados no seu real poder de mobilização de capital, feriram mortalmente os devices. Houve quem individualmente quisesse adquirir um aparelho antes da pandemia, mas hoje todos querem distância e significam a queda de alguns governadores e de vários secretários de estado.

Retornando ao SUS, me parece que a população percebeu seu poder na saúde. Todos assistimos a maior potência mundial, a mais rica, exibir o maior número de vítimas e a maior sensação de abandono da história através de um sistema cada um por si e trate-se se tiveres dinheiro. Soubemos pouco, provavelmente por influência dos grandes grupos sobre a grande mídia, que muitos cidadãos norte-americanos fugiram dos hospitais pelo horror dos valores pagos, às vezes por uma simples consulta e um exame laboratorial. No Brasil não foi assim. Tivemos o tempo todo a certeza de que havia um sistema orgânico, capilarizado, se esforçando para atender a população, mesmo com a atuação nefasta do poder central. Essa percepção parece que foi universal e agora habita corações e mentes.
Será?

 

Marcelo Magalhães

Médico Intensivista/Paliativista  UFRJ/HMMC

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