Se é inexorável, não relaxe, encontre seu espaço – por William Waissmann

Nenhuma categoria profissional contemporânea determina os macrocondicionantes de sua prática. A revolução da informação prenunciava que os domínios de campo para alguns setores dependiam de avanços técnicos que não tardariam.

Um primeiro passo, nos casos médico e de outros profissionais da saúde, foi o controle de gestão de procedimentos, custos, materiais etc. Sistemas bem organizados podem detectar ruídos que fujam aos controles definidos e emitir alertas. Estes podem representar desvios de custos administrativos ou técnicos. Mas tanto ruídos quanto alertas são indicados por profissionais.

Esta foi e é fase cultuada por muitos profissionais. Em especial, os que não viam que o processo estava, apenas, se iniciando. Facilitava suas atividades diárias, sem parecer interferir negativamente em suas tomadas de decisão.
E permitiam, aparentemente, novos ganhos e práticas profissionais. Disparou a prática de emissores de laudo a distância. Diagnósticos de eletroencefalogramas, eletrocardiogramas, audiometrias passaram a ser dados, em muitos casos, por médicos localizados longe de onde eram realizados os exames. As ligações de fios e conexões sendo realizadas localmente por técnicos.

Mas se isto não era novidade para suporte a populações distantes, a que grupos de especialistas pudessem trocar opiniões de imagens fotográficas, passou a ser tomado como negócio, sim. Empresas médicas laudadoras surgiram.
Mas o processo não iria parar por aí. Transmissão de imagens e laudos a elas vinculados seguiram seu rumo. E começaram a afetar a empregabilidade de algumas especialidades.

Se o domínio do instrumento de trabalho fundamental poderia ser fornecido a distância, quem toma o profissional médico como empregado o utilizaria.

É do sistema.
E só se estava começando.

Estatísticas de custos vinculados a diagnósticos, de perdas por exames não necessários eram conhecidas. E a liberdade médica nesta seara começava a apontar restrições. Questionamentos empresariais começaram a ser feitos.
Com a firme chegada da inteligência artificial (IA), novos ritmos e mudanças qualitativas irão se impor. Sistemas com possibilidade de acesso a milhões de prontuários, diagnósticos e resultados podem deduzir efetividades e, em função de concepções fornecidas por seus detentores, construir algoritmos mutantes, a partir de outros que se auto redefinem em função do conhecimento que vão acumulando.

Quem domina os algoritmos, os instrumentos, quem cria as concepções que sustentam resoluções de IA, pode ter força suficiente para estabelecer critérios éticos que reforcem a relevância do custo elevado da tecnologia em saúde e das práticas em saúde.

E esta mudança de critérios pode ser fundamental e de alto risco. O que é eficiência, por exemplo, merecerá, pelo mínimo, questionamentos. Desvios de médias e medianas cada vez mais estreitos podem atender a desejos de retorno financeiro, e, também, representarem afastamento permanente de populações que não atendam a requisitos clássicos de valores normalizados de referência, como exemplo.

Aos profissionais caberá o quê?

Em primeiro lugar, compreender que não é perseguição. A taylorização do trabalho médico e sua proletarização não são novidades. A reação da maior parte das entidades parece historicamente irrelevante. A corrida à defesa de procedimentos, quando puderem ser executados ao longe ou por máquinas, pelo máximo retardará algumas medidas normativas. Se as ações de IA forem eficazes, se imporão.

E esta tendência parece irreversível.

Mas, mais uma vez, cabe questionar. A eficácia atende a quem? O que sobraria ao profissional, então?

De início poderá alimentar dados. No caminho, será substituído nesta função.

Só não será substituído facilmente em seu potencial criativo, ético. E caberá, então, a todos, médicos e entidades, entenderem que têm opções: tentar fazer a medicina mais tradicional de todas, com base em seu instinto; submeter-se a pleno ao domínio dos mandantes; recriar conceitos, teorias e práticas que misturem a capacidade de memorização e realização de algoritmos, de seguir protocolos clínicos simplórios, com sua dedicação pessoal a ouvir e sentir o próximo. Caberá ao médico questionar a restrição não de sua atuação, mas afastamentos que existam do paciente real, que sente, chora, e não responde, necessariamente, a média e medianas.

Se a epidemiologia foi uma grande propagadora da Saúde, seu mal uso e sua restrição de critérios podem impor não menos medicina, mas mais medicina, que questione resoluções baseadas em evidências, em grande percentual financiadas pelas indústrias da saúde, cujos critérios científicos são moldados pela própria indústria, mais uma vez dominante.

Em síntese, caberá ao médico, cada vez mais, ser mais médico.

Questionar resoluções que afastem “minorias”, impedir o engano de maiorias, exercer a política de saúde no plano individual e coletivo. Enfim, existir enquanto conjunto.

Mas e a inexorabilidade do processo? Bem, poderemos todos, no futuro, termos nossas mentes transportadas para seres cuja estrutura permita fugir de um planeta finito. Ou realizarmos, já, enquanto não dominamos tais conceitos, que se rompa com evidências de fantasia.

3 Replies to “Se é inexorável, não relaxe, encontre seu espaço – por William Waissmann”

  1. Alexandre Brêtas Simões

    Acredito que a medicina baseada em evidências seja um caminho para racionalizar, por exemplo, os exames complementares necessários para o diagnostico e tratamento, e obviamente, “restringir”, no bom sentido, exames complementares desnecessários, caros (e quem paga somos nós) e que até podem causar morbidade ao paciente.
    O viés do “desperdício” existe e é fomentado justamente pelo “apelo” de exames e procedimentos médicos, que estão à nossa disposição, rápidos de serem realizados, mas com custo elevado e muitas vezes sem necessidade de serem realizados.
    Coordeno um PA, no sistema Unimed e sempre digo aos “staffs que, conforme a vasta literatura científica, o RX simples é o primeiro exame a ser realizado, na grande maioria das patologias pulmonares, inclusive no nosso protocolo clínico de pneumonia comunitária, elaborado a partir de consensos e guidelines, baseados em robustas evidências científicas. Mas aTC de tórax, mais cara e mais radioativa, “está ali”, rápida e de fácil realização, mas desnecessária na maioria das situações.
    Poderia citar várias outras situações, em que a prática médica é “atravessada” pelo chamariz” do exame ou procedimento médico de alto custo e sem necessidade.
    Quem não conhece hospitais e clínicas que fornecem descontos em aluguel de sala ou espaço para o médico que mais solicita exame?
    Ainda temos a chamada “medicina defensiva”, em que o médico solicita inúmeros exames, muitas vezes sem nem saber o porquê do pedido, mas porque imagina que dessa forma, poderia se proteger de um possível processo judicial.
    E para piorar, a formação cada vez mais deficiente da medicina, na qual o tecnicismo e o afastamento do paciente são cada vez mais evidentes, e tudo isso contribuindo para uma prática médica cada vez mais voltada para o mercado e menos humana.

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  2. Joao Andrade

    O desafio está posto. Como conciliar a inexorabilidade da IA e da Telemedicina com o que possa estar no melhor interesse da sociedade ( entenda os mais vulneráveis e vulnerados).

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