Tecnologia CRISPR – um negócio da China?

O mundo da pesquisa com a genética saltou uma barreira quando deixou de ser apenas o conhecimento da natureza pela ciência e enveredou pelo caminho da manipulação da natureza pela tecnologia. Isso se deu na década de 1970, com a descoberta da transcriptase reversa – uma enzima viral que faz o caminho ‘para trás’ da informação genética, formando DNA a partir de RNA. A possibilidade de modificar a estrutura da cadeia genética abriu um horizonte de possibilidades de intervenções na vida, acendendo a luz de alarme da bioética, pela chegada de um renovado discurso de eugenia, recheado agora pela possibilidade de clonagem humana e outros desejos. A engenharia genética apontava múltiplas possibilidades.

Entre o ano de 1973 e 1975, as descobertas na área do DNA-recombinante e tentativas de manipulações em sequências do código de bactérias, moscas e anfíbios, sem o adequado conhecimento dos riscos, acabaram por gerar uma onda de reuniões entre os centros de pesquisa e os órgãos governamentais dos EUA e da Europa. As Conferências de Asilomar, ocorridas na Califórmia (1), foram encontros históricos onde os próprios cientistas se mostraram preocupados em restringir e regular suas pesquisas, reconhecendo o potencial da tecnologia que estavam manipulando. As inúmeras possibilidades de triagem genética e terapias gênicas tinham seu primeiro marco regulatório.

Muito se avançou desde então, tanto no processo de conhecimento puro da estrutura dos cromossomas, como o sequenciamento genético de várias espécies de vida e finalmente do próprio homem, até o desenvolvimento de inúmeras técnicas de intervenção direta na estrutura genética, que resultaram em clonagem de animais, na produção dos alimentos transgênicos, numa infinidade de medicamentos e terapias revolucionárias, e nas pesquisas com células-troco. Hoje, muito de nossas vacinas, quimioterápicos e hormônios, como a insulina, são produzidos por bactérias pela técnica de DNA-recombinante.

A sombra do neo-eugenismo e do transhumanismo, no entanto, acompanha esse avanço da genômica nos últimos quarenta anos. Doenças de forte expressão da herança genética (penetrância), como a fibrose cística, a doença de Huntington e a hemofilia tem sido o horizonte para onde se direcionam as intenções das pesquisas. Mas essa mesma tecnologia passa a habilitar outros projetos sem respaldo ético-científicos definidos, como a intervenção em características humanas que estão na intersecção entre sua herança de base genética e o ambiente biológico ou social em que se desenvolvem. Estão aí as discussões sobre a inteligência, a criminalidade, a sexualidade e o comportamento humano em geral. Num outro extremo, ultrapassar os limites reconhecidos da natureza histórica do homem, habilitando-o geneticamente para incorporar habilidades e interações com a infinitude do ciberespaço, renovou a discussão filosófica sobre as fronteiras da biotecnologia.

O avanço, como sempre, pode ter duplo sentido. Estamos indo adiante, para algo novo? Ou ultrapassamos um limite, uma barreira, cedo demais?

Nesse final de novembro, um pesquisador chinês anunciou, em formato não convencional – através de postagem no YouTube – um desses avanços, que certamente já entrou para a história da ciência. https://www.youtube.com/watch?v=th0vnOmFltc

He Jiankui, um físico da Southern University of Science and Technology, em Shenzhen/China, utilizou pela primeira vez a tecnologia CRISPR, de edição genética, em dois embriões fecundados através de inseminação artificial. Os pais desses embriões são portadores do vírus HIV, e Jiankui – com a ferramenta CRISPR, que ‘corta’ genomas, retirou desses embriões o gene CCR5, que é o responsável por deixar as células sensíveis aos ataques do vírus HIV.

A tecnologia CRISPR, apresentada ao mundo em 2012 (2), resumidamente é uma técnica de corte de uma determinada sequência de gens, um genoma, com extrema precisão, e substituição por outra sequência que se queira e nos coloca a possibilidade do que se denomina ‘cirurgia genômica’. A esperança de uma técnica que faça reparos em nossos códigos genéticos e nos livre de doenças de traço fortemente hereditário, virou uma febre no mundo da pesquisa genética (3).

O avanço, porém, trouxe inúmeros revezes e contratempos, com fortes questionamentos bioéticos, principalmente no que possibilita o contato com a área do neo-eugenismo e do transhumanismo. No início de 2015 os pesquisadores que desenvolveram a técnica, Jennifer Doudna e David Baltimore, junto a uma dezena de outros expoentes da área, solicitaram uma moratória nas pesquisas (4).

Neste mesmo ano, no entanto, um grupo da Universidade de Guangzhou, na China, utilizou a tecnologia CRISPR para tentar corrigir uma anomalia sanguínea em 86 embriões humanos de uma clínica de fertilização in vitro, que depois foram implantados para concepção. Vários equívocos técnicos e imprevistos acarretaram resultados desastrosos, o experimento foi interrompido e a publicação do trabalho foi rejeitada pela maioria dos periódicos científicos (5).

Então a China retorna ao noticiário com a pesquisa de He Jiankui.

Dentre inúmeros comentários de reprovação da comunidade científica mundial, vale a leitura do artigo publicado esta semana na imprensa por Eric Topol, médico e professor de medicina molecular, fundador do Scripps Research Institute, da Califórnia. https://www.nytimes.com/2018/11/27/opinion/genetically-edited-babies-china.html

Topol enumera as incertezas científicas e as violações éticas da pesquisa realizada e posiciona o avanço de He na categoria da violação irresponsável dos limites da prática científica. Deixa claro as inúmeras incógnitas dos rearranjos genéticos, e se pergunta sobre as futuras complicações que poderão acometer as crianças geradas pelo experimento. Na sua opinião, ainda não chegamos ao conhecimento necessário para “editar bebês”.

Mesmo com a reprimenda oficial da universidade chinesa, que alegou desconhecimento sobre o trabalho de seu pesquisador, e comunicou que abriu inquérito para investiga-lo, a vinculação deste à sua própria empresa privada nos traz outra questão.

A pesquisa genética transformou pesquisadores norte-americanos da categoria de scholars para o clube dos milionários. Há inúmeros exemplos, como o que ocorreu com os criadores da Genentech.

A China parece estar tentando tomar a frente desse negócio.

 

Luiz Vianna

 

1- Paul Berg et al., “Summary Statement of the Asilomar Conference on Recombinant DNA Molecules”. Proceedings of the National Academy of Sciences, v. 72, n. 6, pp. 1981-4, 1975.

2- Martin Jinek et al., “A Programmable Dual-RNA-guided DNA Endonuclease in Adaptive Bacterial Immunity”. Science, v. 337, n. 6096, pp. 816-21, 2012.

3- L. Cong et al., “Multiplex Genome Engineering Using CRISPR/Cas systems”. Science, v. 339, n. 6121, pp. 819-23, 2013

4- B. D. Baltimore et al., “A Prudent Path forward for Genomic Engineering and Germline Gene Modification”. Science, v. 348, n. 6230, pp. 36-8, 2015

5- David Cyranoski e Sara Reardon, “Chinese Scientists Genetically Modify Human Embryos”. Nature, 22 abr. 2015.

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