Espera-se um ganho epistemológico, uma melhor aproximação da certeza científica, quando se migra da experiência pessoal para a recomendação dos grandes trials multicêntricos. A Medicina Baseada em Evidência (MBE) enterrou no passado recente, da geração anterior de médicos, o valor absoluto do saber pessoal nas suas decisões.
Muito já foi dito sobre isso, mas a base intuitiva do raciocínio indutivo do profissional não se compara em acurácia às evidências estatísticas. A arte médica estaria, então, em outro ponto. Conduzir de forma fiel a observação dos dados no interesse de cada caso seria uma das principais características a zelar*.
A questão, no entanto, tornou-se outra. Onde está a fidelidade na evidência científica? Seus pilares parece que ruíram. Desde a enxurrada de vexames da pesquisa na área biomédica, denunciados no livro da Dra. Márcia Angell em 2007 – A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos (Record, 2007), até o mais recente e radical Medicamentos Mortais e Crime Organizado – Como a indústria farmacêutica corrompeu a assistência médica (Bookman, 2016), do Dr. Peter Gøtzsche. A primeira, de Harvard, foi editora-chefe da mais prestigiada revista médica do mundo, o semanário The New England Journal of Medicine; o segundo, diretor do Nordic Cochrane Centre de Copenhagen, uma filial européia da mais respeitada instituição de validação científica do que se pode pensar como evidência científica na área médica**.
Esta semana, um grande pesquisador da Harvard Medical School foi denunciado pela imprensa leiga, o Dr. Piero Anversa. Já afastado da instituição, 31 trabalhos seus publicados pela universidade foram considerados fabricados e falsificados. (ver https://www.nytimes.com/2018/10/15/health/piero-anversa-fraud-retractions.htmlsmid )
O pesquisador insiste há anos na técnica de implante de células-tronco em corações com dano miocárdico, no intuito de conseguir regeneração e substituição celular e recuperação funcional do órgão. O mais curioso é que, apesar de seus resultados não conseguirem ser reproduzidos por seus pares em outros centros de pesquisa, algumas empresas se estabeleceram para comercializar a terapia e novas pesquisas, uma das quais pertencente ao próprio Dr. Anversa. A reportagem esmiuça o prejuízo, tanto das instituições federais que financiaram as pesquisa, quanto do hospital onde atuava Anversa, multado em 10 milhões de dólares pelo governo norte-americano.
Para nós, médicos, a questão da validade da pesquisa científica tornou-se o ponto chave. Somado a essa dificuldade está o fato de que agora lidamos mais com o adoecimento por enfermidades de longa evolução e com a questão da prevenção de longo prazo, na virada epidemiológica das Doenças e Agravos Não Transmissíveis (DANT). Ficamos, nesses casos, mais dependentes ainda dos resultados de coortes e estudos multicêntricos.
O nó crítico da MBE, então, parece ser a confiança na pesquisa. Esse é o debate.
Luiz Vianna
*Parker, M. False dichotomies: EBM, clinical freedom, and the art of medicine. J Med Ethics; Medical Humanities 2005;31:23–30
**Em outro post, comentaremos a recente demissão de Gøtzsche dessa instituição, um escândalo a parte…