O ‘Tyrannosaurus Health’ já chegou

Imagem: PlusPNG (modificado)

Em 2013 publiquei um texto, onde utilizava a figura que temos do jurássico réptil para me referir à chegada de grandes corporações ao sistema de saúde no Brasil. A analogia tentava chamar a atenção para duas características simbólicas da imagem do predador. A primeira, a delicadeza enganosa de seus membros superiores, dois bracinhos que nos parecem frágeis e carinhosos. A segunda, o apetite e agressividade desse carnívoro, que o colocava no topo da cadeia alimentar de sua época.

Assim, temos a delicadeza e boa intenção que aparece nos discursos da abordagem dessas grandes estruturas: melhoria da qualidade e do cuidado, melhoria da eficiência, oferecer inovações, dispor à coletividade as benesses da competitividade do mercado – sic.

Do outro lado, a voracidade que vem por trás desses discursos, com a monopolização, a cartelização, a financeirização bancada por amplo sistema de subsídios públicos, e a ocupação tanto da agência reguladora da área como da bancada legislativa, através de forte lobby e financiamento da campanha e atividade de congressistas.

O que me despertou essa imagem foi a chegada, um ano antes, da United Health (UHG) ao país, com a compra do maior plano de saúde à época, em número de usuários, a Amil (1). A norte-americana UHG adquiriu a brasileira pelo montante de R$ 9 bilhões – ou U$ 5 bilhões na cotação do momento da transação. Em seu país, uma gigante com mais de quarenta milhões de usuários em sua carteira e um faturamento anual que beirava U$ 200 bilhões.

Chegava no momento em que era consenso que o mercado da saúde suplementar estava próximo de atingir o seu limite: uma expansão recente estava levando essa cobertura de 25 para 30% da população brasileira. Na época, aproximadamente 50 milhões de pessoas.

Meses depois dessa negociação, no começo de 2013, o alto escalão do Ministério da Saúde reuniu-se com diretores dos principais planos de saúde na intenção de desenvolver e subsidiar um produto de baixo preço para uma camada da população que estava ‘ascendendo’ economicamente. Antes que fosse anunciado qualquer projeto, houve muito protesto de sanitaristas de que a medida prejudicaria o modelo do SUS (2), e o governo recuou.

Mas, o que me parecia claro naquela época, hoje se torna evidente. Esses grandes predadores não vieram para brigar entre si, e competir pelos 25-30% da população. O que está em jogo, o foco para o grande apetite do capital, é o montante da população sobre a cobertura integral do SUS – os outros 70% da população. O que se quer são os fundos públicos; subsídios e financiamento para o modelo de cobertura universal, já amplamente apoiado pelo Banco Mundial. A privatização total do sistema, por dentro do Estado.

Há pouco mais de seis meses, o presidente da Unimed do Brasil, em sintomática entrevista denominada UOL Líderes, demonstrava essa postura ao pregar a necessidade de revisão do compromisso da Constituição de 1988, da saúde como direito do cidadão. Na sua opinião, isso se deu “em uma época em que talvez não se imaginasse que hoje isso não é possível”(3).

Agora, em artigo publicado no jornal O Globo do último dia 8/12, foi a vez do presidente da UHG no Brasil, o dr. Cláudio Lottemberg. Embora, curiosamente, o articulista assine o texto apenas como Empresário.

https://oglobo.globo.com/opiniao/artigo-mais-saude-integracao-23290572

O médico-empresário permaneceu vários anos no comando do Hospital Albert Einstein, o mais bem-conceituado dos hospitais privados da América Latina. De lá, saiu para dirigir a Amil, após sua venda para a UHG. Venceu a disputa interna pelo comando da política da empresa com seu próprio ex-presidente ainda vivo. Esse histórico demonstra que sabe lidar com entidades fortes e apetites vorazes.

Nesse texto, no entanto, titubeia no estilo desde o início ao caracterizar nosso sistema de saúde como único, “pois inclui uma abordagem complementar entre as infraestruturas públicas e privadas”. Segue titubeando, ao solicitar que no ano de 2019 nos concentremos “nas práticas e políticas de saúde, e não em política na saúde”. E, politicamente se posiciona, ao reconhecer que “o montante gasto no setor público é insuficiente”, mas define que “discutir sobre a falta de recurso [desvia] nossa atenção para debates sobre ideologias e princípios”.

Ora, falta de recursos não é uma questão ideológica. Ela pode ser demonstrada tecnicamente. Há farta evidência disso. Mas admitir que faltam recursos e não considerar isso uma questão fundamental, isso sim é uma postura político-ideológica.

O que aponta em direção ao SUS fica evidente na proposta de implantação do Triple Aim (4) para o sistema de saúde no país; organizado pelo Institute for Healthcare Improvement (5), o modelo vem de sua experiência em parcerias à época no Einstein, e ajudou a moldar as políticas de gestão do Obamacare. E então, apesar do texto curto, dispara propostas para a rede hospitalar e propõe um “plano diretor digital [com] prontuário eletrônico integrado”. Nesse momento, é importante não deixar de perceber os movimentos dos ‘bracinhos’ delicados. Sacudindo e repetindo o discurso de oferecer qualidade, inovação, acessibilidade e integração da rede privada à pública. Atentem, o apetite é voraz, e ele já está entre nós.

Luiz Vianna

 

1- http://veja.abril.com.br/noticia/economia/ans-aprova-compra-da-amil-pela-unitedhealth

2- http://cebes.org.br/2013/03/cebes-e-entidades-repudiam-pacote-de-ajuda-a-operadoras-de-planos-de-saude-e-ministro-da-saude-se-pronuncia/

3- https://www.uol/economia/especiais/entrevista-uol-lideres-orestes-pullin-unimed-do-brasil.htm#tematico-1

4- Para o Triple Aim ver: BERWICK, D.M. et al. The Triple Aim: Care, Health, And Cost. Health Affairs, Bethesda, v.27, n.3, p.759-769, 2008.

5- Ver http://www.ihi.org/

 

 

2 Replies to “O ‘Tyrannosaurus Health’ já chegou”

  1. Celina Santos Boca Marques Porto

    Impressionante essa síntese, se é que podemos chamar assim. Muitos dos elementos que a compõe são conhecidos. Subsídios, lobby, bancada parlamentar vigorosa com apetite também vigoroso. Nós do setor público precisamos pensar e agir.
    Por onde caminharemos?
    Desse modo, pelo andar da “coisa monstra” não restará, em breve tempo, nada do sistema público. Nada de SUS, nada de direitos trabalhistas, nada de previdência, nada de educação.
    Nada de nada.
    Veremos a ” coisa monstra” crescer, engordar e se multiplicar?
    Celina Boga

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    • Luiz Vianna Resposta do autor

      Exato Celina,
      nossa ideia com o Observatório é justamente chamar a atenção para esses fatos e possibilidades de futuro da saúde da nossa sociedade. Precisamos estimular o debate e buscar as saídas que queremos para o modelo que seja melhor para a coletividade.

      Responder

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