Há um mês, a crise na disponibilidade de médicos em todo o Brasil é um dos principais assuntos comentados. O contexto envolve a crise de oferta de serviços básicos de saúde em todo o Brasil, agravada pela saída dos cubanos do Programa Mais Médicos para o Brasil.
Quando criado, o Programa se propunha a lotar, emergencialmente, médicos nos locais de mais difícil provimento (regiões indígenas, periferias de grandes cidades, áreas remotas), além de implementar outras ações, como a abertura de novos cursos de graduação em Medicina e a ampliação de vagas de Residência Médica em Medicina de Família e Comunidade.
Essas ações, quando apresentadas, receberam pesada oposição por parte de entidades médicas, notadamente o Conselho Federal de Medicina e a Associação Médica Brasileira, sob argumentação principal de que a falta de médicos seria falaciosa.
Não era. O número de médicos no Brasil, de 1,8 médico/1000 habitantes, era inferior ao recomendado pela Organização Mundial de Saúde e distorcido em se considerando as graves diferenças regionais existentes, mesmo, em grandes cidades do Sul/Sudeste.
Independente de opiniões, o fato é que, em 2013, quando da criação do Programa, havia muita dificuldade de fixar profissionais médicos na atenção básica. De lá para cá, o que mudou?
Apesar do expressivo aumento de oferta de médicos com o Programa, bem como o aumento de vagas para ensino e residência, continua a haver fragilidades nos vínculos na atenção básica, e, aí, não só de médicos como de toda a equipe multiprofissional. Campeiam, pelo país, notícias de municípios que reduzem o tamanho de suas redes, com o fechamento de serviços de atenção básica e a demissão de profissionais.
Além da crise econômica, contribuem para isso a precarização dos vínculos trabalhistas entre os municípios e os trabalhadores e os limites impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) para gastos em pessoal.
Quanto à precarização, diversos trabalhos evidenciam que relações trabalhistas precárias proporcionam aumento da rotatividade de mão de obra e redução dos vínculos entre os profissionais e o serviço.
Em relação à LRF, cabe destacar que não se discute sua importância em promover o equilíbrio fiscal, mas que sua conformação atual não define parâmetros para os gastos em pessoal. Assim, políticas públicas que envolvem intensivamente profissionais que devem ter laços de continuidade de relações com a população, como a atenção básica, na saúde, e o ensino fundamental, na educação, são descontinuados, enquanto se disseminam cargos em comissão pelas Prefeituras, com indicações políticas e de fundo imediatista, muitas vezes orientadas para que o Prefeito não corra riscos de impeachment em vista de sua relação com as Câmaras de Vereadores. Ou seja, o velho toma lá dá cá.
Hoje, é noticiado que, em 2018, há mais procura de médicos para o Programa Mais Médicos por conta, em grande parte, da migração de profissionais que já atuam na Atenção Básica, porém com vínculos precários. Ou seja, se “cobre um santo para descobrir outro”.
Como solucionar? Seguem algumas sugestões, que envolvem o princípio do direito do cidadão à saúde, expresso na Constituição do Brasil, e da evidência de que é, sim, a Atenção Básica (ou Primária) o melhor caminho para a racionalização dos gastos e para a coordenação do cuidado, independente do estrato sócio-econômico da população atendida:
1. Intensificar ações para a ampliação das Residências em Atenção Primária, de caráter multiprofissional, e dos cursos de formação de profissionais de nível médio.
2. Implantar a carreira da Atenção Básica no SUS, com incentivo à contratação por seleção pública de provas e títulos, por municípios, consórcios intermunicipais e estados (nas áreas de baixa organização municipal), além da União nos Distritos Sanitários Indígenas, para a equipe multiprofissional, com valores de referência pactuados para as contratações entre os Entes Federativos e as categorias profissionais.
3. Ampliar recursos para a estruturação de serviços de saúde, com foco em áreas de maior vulnerabilidade social e geograficamente isoladas, envolvendo equipamentos e ferramentas de conectividade.
4. Estabelecer mecanismos para que os recursos de transferência fundo a fundo e os gastos de pessoal na Atenção Básica não sejam incluídos, na receita e na despesa, no cálculo de percentuais com pessoal para fins da Lei de Responsabilidade Fiscal, por Medida Provisória, até que sejam feitos no legislativo os ajustes para que a LRF não prossiga funcionando, na prática, como elemento de bloqueio de despesas com políticas sociais estruturantes.
5. Manter o Programa Mais Médicos em caráter temporário como elemento de mitigação das desigualdades até a efetiva implantação das medidas estruturantes.
6. Reconhecer o direito de acesso de todos os cidadãos brasileiros à Atenção Básica e à Saúde da Família como elemento de estruturação do SUS e de racionalização dos gastos em saúde, pela União, Estados e Municípios.
Carlos Vasconcellos
Medico de Família e Comunidade / Médico Sanitarista
Caro Carlos,
O texto tem elementos interessantes (propostas), mas também algumas imprecisões. A OMS jamais recomendou qualquer indicador de médicos por habitantes. O que existe são análises comparativas mostrando que áreas com densidades de profissionais de saúde (médicos, enfermeiros, e outros, somados) abaixo de 2.3 teriam menor probabilidade de atingir certos objetivos como ODM e agora ODS. Mas em relação a médicos não, pois não faz sentido tecnico ou científico. Se tiver interesse posso lhe enviar as referências.
Vou ler com cuidado as propostas para comentar.
Sim, de fato, cometi uma imprecisão. Os dados da OMS, que se referem a 2008 (http://apps.who.int/gho/data/node.country.country-BRA), estabelecem para o país uma taxa de 1,76 médico por 1000 habitantes. O que ocorre é que o Ministério da Saúde, no Programa Mais Médicos, com base nessa taxa e em dados da demografia médica, estabeleceu como critério de aceitação de profissionais estrangeiros que os países de onde fossem provenientes tivessem taxa de médicos/habitante superior à brasileira, excluindo candidatos, por exemplo, de países como a Bolívia ou o Chile. Em paralelo, houve declarações de representantes da OMS (https://exame.abril.com.br/brasil/ibge-relacao-medico-habitante-esta-abaixo-do-indicado/) manifestando preocupação com o baixo número de médicos no Brasil, em particular se considerando as diferenças regionais.
Carlos
Tambem gostei bastante de seu texto e das propostas para o futuro. Deixo.aqui uma pergunta. Será possivel para os pequenos municípios brasileiros assumir a contratação de médicos sem o apoio do MS tal como presente no PMM?
A contratação de médicos por municípios de pequeno porte envolve as seguintes questões:
a) Legais
A EC 41/2003 determina que nenhum servidor pode ganhar mais que o Prefeito Municipal. Em municípios muito pequenos, particularmente em áreas remotas, é usual que o mercado inviabilize a mobilização de médico, não residente, a se transferir para a cidade para atuar em tempo integral com salário inferior ao Prefeito.
A Lei de Responsabilidade Fiscal, por sua vez, limita os gastos com pessoal em 54% das receitas correntes líquidas, o que, também, limita a capacidade de contratação pelos municípios de técnicos especializados, quando, como no caso dos médicos, os valores de mercado representam impacto significativo nas finanças municipais.
b) Financeiros
Os recursos transferidos fundo a fundo para o custeio de Equipes de Saúde da Família, hoje, é variável, dependendo da composição da equipe e do seu rendimento frente ao PMAQ (Programa de Melhoria do Acesso e Qualidade da Atenção Básica). Mesmo em cenários de excelência, os recursos transferidos representam em torno de 30% do necessário para o custeio do serviço, pressupondo o cofinanciamento estadual (irrelevante na prática) e municipal, com recursos próprios. No caso dos municípios em situação de pobreza, muitas vezes dependentes das transferências federais do Fundo de Combate à Pobreza e do Fundo de Participação dos Municípios, se torna, por vezes, irreal destinar recursos para a mobilização de médicos. Isso se agrava quando, em vista da escassez em áreas remotas, os profissionais que se disponham façam verdadeiros leilões para sua contratação.
Uma solução, que propus no texto, seria que, no cenário de municípios de pequeno porte, as contratações se dessem por entidades associativas entre municípios (consórcios intermunicipais, por exemplo), ou pelos Governos Estaduais, com a consequente rediscussão da distribuição de tetos financeiros.
Em todos os casos, me parece fundamental que as contratações (e não só de médicos) fossem feitas na perspectiva de carreira, com vínculos trabalhistas que motivem à permanência em médio prazo e articulados a propostas de educação permanente, o que poderia se concretizar com a criação de laços fortes entre a rede SUS e as estruturas universitárias, públicas e privadas, existentes nas Unidades da Federação.
Carlos, talvez seja necessário incluir uma terceira dimensão: política- institucional e de saúde. Penso que já estamos passando da hora de rever as responsabilidades de cada um dos entes federativos (se o município do Rio de Janeiro está nessa crise, imagina os pequenos municípios, que a rigor não deveriam existir, posto que 100% dependentes de transferências estaduais e federais).
Você tem razão em pensar que as universidades podem ter um papel diferenciado nessa equação. Hoje a maioria delas se limita a gerenciar (com muitos problemas), seus ineficientes (a maioria) hospitais. Mas precisamos entender e rediscutir o papel das SES.
Abraços