Crônica de dez mil mortes anunciadas
“A mensagem estava caída no chão quando Santiago Nasar saiu de casa,
mas ele não a viu…”¹
Não me recordo de outra época, em minha vida na medicina, como esta em que estamos passando por todo o mundo. Embora cause espanto, ao mesmo tempo isso não surpreende, porque nossa geração e de quase todos, ou a maioria dos vivos que nos rodeiam, jamais passou por algo assim.
O mundo inteiro parado, na expectativa de um possível futuro de luto, com uma doença fora de controle, pouco conhecida e com características assombrosas como as de uma peste. Com a conexão instantânea de todos os cantos, acompanhamos em tempo real, aguardando apenas na virada dos fusos, o desenrolar dos dias em cada local que enfrenta a contabilidade das vítimas e procura as melhores medidas para o controle dos danos.
Porém, foi em meio aos sinais seguros que a racionalidade do conhecimento científico nos apresentava desde o início, apontando para esse desenrolar de sofrimento e mortandade, que se disse a maior quantidade de tolices e falácias na área médica desde a era pré-moderna. Irracionalidades de todos os matizes, conclusões precipitadas, vieses de observação, argumentos falaciosos, propagandas e, infelizmente, ainda a autoridade da fé. Não podemos deixar de notar esse paradoxal pseudo-ceticismo de origem político-ideológica que questiona a ciência e se ampara na providência divina. O retorno a essa disputa medieval entre razão e fé sobre os fatos do mundo natural, com a demolição do que se ganhou nos últimos séculos, fica ainda mais evidente na figura do mais poderoso dos líderes do planeta sugerindo aos seus cidadãos que entornem desinfetante em seus brônquios.
E nesse caldeirão entraram todos: no ciclo infindável dos que querem vender, e dos que querem consumir…. a BigPharma e suas pílulas milagrosas; os fabricantes de insumos, de testes, de máscaras, de respiradores; as grandes redes de serviços, dos hospitais, e das OSs; os partidos, os candidatos, os gestores de distritos, cidades e países². Um desenho novo de estruturas de saúde de emergência, e o capital dos fundos de investimentos se materializa em leitos de UTIs em containers. E, curiosamente, tudo se apronta para a chegada daqueles que sempre estiveram nas filas da regulação, com seus cânceres, sua tuberculose, HIV, dengue, desnutrição e fome. Leitos para todos os febris! Respiradores urgente!!
Mas ainda não fechamos as contas, nem abrimos todos os leitos que prometemos. Porque já não tínhamos mais profissionais bem pagos e bem treinados. Porque a enfermagem já trabalhava além do seu limite e há anos luta na justiça por um turno de trabalho que não destrua as suas forças. Porque afastamos os médicos propositadamente da rede e da carreira pública, e implantamos a lógica do empreendedorismo, da uberização e da pejotização. Não se constroem profissionais com verbas de última hora como se costuram máscaras de qualquer tecido. Onde estavam nossos planos para a saúde coletiva?
E o que era previsto que viria, chegou. Não houve clima quente que nos afastasse. Não houve fala na imprensa oficial que proibisse. Não houve mensagem de whatsapp que desfigurasse os fatos na sua realidade. Não houve ‘se Deus quiser não vai chegar’.
Naqueles que atendo agora, já estão o temor em seus olhos e a confirmação do “infiltrado em vidro fosco” em seus pulmões. Suas mãos com dedos tremendo digitam mensagem para alguém que eu nem sei. Já são frequentes as despedidas apressadas da família nas portas do CTI. E ali, pode estar realmente o final.
Mas a desrazão parece ainda encobrir a realidade a muitos, e essa talvez seja a mais grave e incurável de todas as nossas patologias. Quando mostro a gravidade assustadora das lesões em uma tomografia e a necessidade de internação de uma jovem mãe, e seu marido me questiona se essa doença realmente é grave, ou se é invenção da rede de TV, eu percebo que não tenho nada realmente eficaz a lhe dizer; ele não tem cura. E quando temos mais de 10 mil famílias que enfrentaram o luto no Dia das Mães e parte da nossa sociedade reage com escárnio, o que a ciência também nos diz é que a nossa pior doença também já está anunciada.
Luiz Vianna Sobrinho
1- Crônica de uma morte anunciada – Gabriel Garcia Marquez
2- Ver excelente revisão crítica desta epidemia, em texto do Prof.Luís Castiel http://observatoriodamedicina.ensp.fiocruz.br/ensaio-sobre-a-pandemencia-por-luis-castiel/
Artigo excepcional, Luiz. Ao denunciar a tão famigerada uberização e pejotização do fazer médico, expõe-se uma realidade na qual a estrutura, não apenas institucional, mas também pessoal-profissional, se revela extremamente precária e decadente. E, não obstante a hodierna hecatombe, outra catástrofica tendência se revela: a ascensão pestilenta de uma espécie de psicopatologia coletiva baseada na completa desconexão em relação à conjuntura factual, na frieza e indiferença quanto à vida humana e na negação quase maniqueísta ao fazer científico, em prol de “percepções próprias” que, na essência, consistem, tão-somente, em repetições exasperadas de narrativas políticas de quinta categoria. Dessa peste, entretanto, só se pode originar um único e nefasto prognóstico.
Exato, meu caro Bryam. Uma peste anunciada.
“Não se constroem profissionais com verbas de última hora como se costuram máscaras de qualquer tecido,” Muito boa a colocação o cenário é catastrófico e teremos sequelas a médio e longo prazo , a ignorância do povo e a desinformação também está matando muito !!!
Ótimo Luiz. Aparecer verbas de onde “nunca existiram” para compras e remunerações, discursos quase manicomiais, aproveitadores com fome de hiena atrás da carniça humana que geram lucros… é o infeliz padrão dos subdesenvolvidos.
Concordo, excelente radiografia do panorama. Espanta ainda a súbita ignorância da situação anterior dos Hospitais no caso do Rio, com pacientes nos
corredores e a injustiça salarial com os trabalhadores da área de saúde.