Artigo publicado originalmente na coluna Opinião, do jornal O Globo, de 20/4/2019
Analogias entre corpo humano e governo e entre médicos e políticos são antigas e frequentes. Governantes costumam emitir diagnósticos sobre desordens sociais e prescrever regimes e remédios para recuperar a saúde das nações. Recentemente, as metáforas sobre a corrupção, termo que resulta da junção de cor (coração) com rupta (rompimento), como uma doença, um câncer que se alastra e necessita ser extirpado, tornaram-se muito usuais. A ideia de que dinheiro não falta, bastaria extrair o tumor da corrupção para que a vida social seguisse saudável, definiu preferências eleitorais em 2018. Contudo, a promessa de devolução da pátria curada, em apenas três dias, não foi cumprida. As evidências sugerem que a mercantilização da política e a disseminação das práticas de tirar e levar vantagem em tudo não são patologias naturais a serem combatidas por cirurgiões sociais amadores. A própria área da saúde, suas instituições públicas, empresas e profissionais têm sido incriminados por pequenas e grandes corrupções.
Há poucos dias, um grupo liderado por profissionais de saúde da organização social Federação Nacional das Entidades Sociais e Comunitárias foi identificado e preso. Eles desviaram recursos públicos de secretarias de saúde paulistas para comprar a empresa de planos privados Medical, em Niterói, e emitir notas fiscais frias. Organizaram um circuito interestadual, relativamente estável, sustentado por funcionários de empresas privadas e órgãos públicos nacionais e municipais. Conseguiram atuar durante pelo menos três anos e deixaram para trás dívidas trabalhistas e lacunas assistenciais. O montante dos recursos desviados pela quadrilha Niterói-São Paulo, cerca de R$20 milhões, é pelo menos dez vezes inferior ao dos esquemas de aquisição de material cirúrgico pela Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro durante o governo Sérgio Cabral. O denominador comum das duas transações é a indiferença pelo sofrimento de doentes.
O uso indevido de recursos públicos da saúde no Brasil, seja por rústicos ou elegantes acordos, decorre, antes de tudo, da negação das recomendações de Adam Smith sobre o pagamento de impostos. Na Inglaterra, o que denominamos imposto de renda foi instituído em 1799 para financiar guerras e só se tornou um fundo público socialmente redistributivo no orçamento proposto por Lloyd George em 1909. No Brasil, houve duas iniciativas malogradas de imposição tributária, em 1843 e em 1867, para gerar recursos para a Guerra do Paraguai. A República instituiu o imposto de renda, mas sua capacidade redistributiva é ainda limitada pela baixa representatividade dos valores arrecadados em relação à renda bruta total do país. Pagar impostos pressupõe uma relação implícita de confiança e reciprocidade entre os contribuintes do presente e do passado, e interesse mútuo de contribuir para financiar serviços sociais e projetos futuros.
A corrupção, ao contrário, baseia-se na desconfiança, no pessimismo, na sonegação, e nenhuma cerimônia para empreender ações privado-públicas realizadas com os recursos arrecadados. Impostos pagos e não utilizados para que trabalhadores e ricos sejam cidadãos com acesso igual a serviços sociais de qualidade se tornam butim de piratas modernos, sejam os autônomos ou protegidos por substitutos de reis e rainhas. Sem uma base tributária ampla e progressiva e uso criterioso dos recursos, o SUS universal não fica de pé. Alternativas apresentadas como remédios infalíveis para a corrupção, como Organizações Sociais de fundo de quintal e planos privados sem abrangência de cobertura, e outras, como a “pejotização”, que driblam o pagamento de impostos, nutrem ativamente ilícitos e má qualidade do atendimento ao público.
Movimentos pendulares na atribuição de responsabilidades pela saúde ora ao público, ora ao privado, e seus consequentes arranjos formais e informais fragilizam as garantias institucionais dos direitos. Transmutar verbas públicas em rendimentos privados não é sintoma de uma doença natural e, sim, de democracia insuficiente.
Lígia Bahia
Parabéns Ligia. A corrupção é o maior problema na saúde. Existem outras questões que você muito bem coloca, mas, ao trazer o tema corrupção