Desde o início dessa pandemia a China deu exemplos de que tem muito a ensinar para o mundo, ainda que, muitas vezes, sejam lições conhecidas, mas jogadas fora pelos países que adotaram o modelo neoliberal a partir das décadas 1980-90.
Um dos pilares desse modelo, menos discutido fora do setor saúde, foi a imposição do instituto da patente industrial para produtos farmacêuticos e biológicos em muitos países que não a aceitavam, como China, Brasil e Índia.
A China resolveu aderir para romper seu isolamento comercial e ter acesso rápido à Organização Mundial do Comércio, sucessora do GATT. Porém outras medidas e vantagens foram dadas pelo seu governo para atrair empresas estrangeiras de tecnologia a se instalar no pais, mantendo o controle acionário ou legal sobre as que lá se instalassem. Com isso pode investir em seus próprios institutos de pesquisa e universidades.
A Índia aceitou o acordo chamado TRIPS, com uma cláusula de implementação 15 anos após a assinatura. Nesse tempo investiu em trazer tecnologias para o pais. E o Brasil, já no Governo FHC, o assinou com validade para 20 anos antes da assinatura (pipe-line), induzindo ao fechamento de indústrias da área da química fina que já detinham essas tecnologias produtivas!
De lá, até o impeachment do Governo Dilma, a diplomacia brasileira abriu uma fenda nesse acordo (flexibilidades), criando condições para a possibilidade de licenciamento compulsório para possibilitar o acesso no interesse da saúde pública.
Foi nesse espaço que Farmanguinhos, do qual eu era diretor, advogou o licenciamento do Efavirenz, que seria proposto pelo Ministro Temporão e decretado pelo Presidente Lula. Diferente dos que usaram o licenciamento para importar da Índia (já que estava em seu ‘período de graça’ do acordo), Farmanguinhos aceitou e cumpriu com suas obrigações desenvolvendo o produto, sem a orientação devida pela Merck, produzindo para atender a metade das necessidades do país, com a parceria de farmoquímicas nacionais escolhidas em verdadeiro concurso público com banca de pesquisadores, advogados e entidades da área, com grande economia para o país. (A outra metade planejada para ser produzida por outro laboratório público passou a ser importado da Índia pelo Ministério da Saúde por segurança de abastecimento.)
Esse episódio foi significativo e influenciou a postura dessa mesma empresa americana, que de beligerante passou a procurar Farmanguinhos para estabelecer laços cooperativos. As ameaças de ‘quebrar patentes” de José Serra, nunca haviam se concretizado.
Essa memória nos ajuda a situar o problema patentário no mundo e no Brasil, durante uma pandemia.
Num esforço mundial sem precedentes, a OMS, fundos diversos e outros organismos difundiram estímulos para o desenvolvimento de vacinas. Mais de 140 estão catalogadas e sendo acompanhadas. Paralelamente, a OMS e outras entidades lutam por fazer esse produto disponível para toda a humanidade – fazer dela “a global good”, um bem mundial, livre de restrições de patentes.
No momento em que é anunciado que há vacinas à vista, é fundamental assegurar que não sejam patenteáveis!
A primeira voz sólida ouvida nesse sentido foi a do Presidente da China na 73a. Assembléia Mundial da Saúde ao anunciar que os progressos do desenvolvimento de qualquer uma das 5 vacinas em testes na China se tornará um bem público mundial, o que significa que repassará sua tecnologia livremente. Ao mesmo tempo anunciava uma contribuição de 2 bilhões de dólares em dois anos para o enfrentamento à COVID-19 para os países mais pobres.
De outro lado, a concorrência científica não está acontecendo sem cooperação, muito ao contrario, o que nos faz mais fortes para advogar a não aplicabilidade do tratado de patentes. Mas, como sempre, aves de rapina sobrevoam os céus neoliberais.
A promoção de vacinas potenciais por empresas farmacêuticas ou biotecnológicas é um recurso que utiliza a mídia e assim prevê fundos e valorização de suas ações. Se não der certo, o jogo no mercado de ações pode promover lucros.
Há cerca de três anos, por um ano, representei a Fiocruz no ‘Interim Board’ da Coalizão para Preparação para Epidemias e Inovações (CEPI), que gere um fundo, criado com contribuição inicial do Governo da Noruega e outros doadores, destinado a promover inovações em vacinas para Ebola, MERS e que certamente está agora também ativo.
Naquela ocasião defini nossa posição institucional segundo a orientação que o Itamaraty e a Fiocruz defendiam, inclusive em reuniões da OMS: Cooperação como eixo central, sem patentes para essas novas vacinas em desenvolvimento.
Assim, entende-se as iniciativas do Instituto Butantã e Biomanguinhos de procurar parceiros para o desenvolvimento de vacinas contra a COVID-19, mas a dependência tecnológica em etapa acessível aos pesquisadores nacionais fica mantida. A Fiocruz, a USP, a UFRJ e outras universidades, consorciadas ou não, devem estar também trabalhando para produzir o antígeno adequado ao desenvolvimento de vacinas.
Os dois grandes laboratórios produtores brasileiros, além de outros menores mas igualmente importantes, têm plena capacidade de rapidamente produzir vacinas novas e mesmo desenvolver a tecnologia produtiva como fez o Butantã com a vacina contra a Dengue em testes.
Não sabemos se o acordo do Instituto Butantã com uma empresa chinesa (Sinovac) e o da Fiocruz com uma inglesa (AstraZenica) prevêm a patente industrial, pois obteríamos de qualquer modo a licença produtiva. Não vimos nada a esse respeito no que foi divulgado. Mas cremos que a COOPERAÇÃO E NÃO A CONCORRÊNCIA a nível mundial regem as bases desses acordos.
O Brasil é um país que pelas falhas do controle epidemiológico dessa pandemia propicia a vantagem de ter incidência alta de casos para que os testes possam ser realizados em menor tempo. Mas por pequenos que sejam, também terá riscos.
A elevada quantia que o Brasil pagará para testar e desenvolver industrialmente o produto (USD 127 milhões) incluindo pouco mais de 30 milhões de doses e depois 2,30 US dólares por dose para outros 70 milhões de doses (USD 161 milhões) mesmo que não haja sucesso, valerá a pena por permitir a instalação de uma plataforma produtiva em Biomanguinhos que não temos no país, segundo seu diretor.
De outro lado, o diretor da AstraZeneca no Brasil declarou na Câmara dos Deputados que “nesse momento” a empresa não visa lucro, mas sim atrair outros países para o projeto. Assim a contribuição do Brasil com dinheiro à vista e vacina à prazo, pode fazer o investimento ser visto também como uma generosa contribuição para o desenvolvimento de uma vacina para o mundo, que se provar ser efetiva e segura, poderá ser produzida livremente.
Já o Instituto Butantã divulgou que para os testes clínicos terá de desembolsar R$ 85 milhões e não terá de pagar royalties, mas precisará investir na ampliação de seu parque fabril, sem divulgar números, ainda que tenha a plataforma tecnológica necessária. Mas poderia inicialmente fazer acordos de produção.
Com tantas incertezas imunológicas, nada mal se ambos acordos forem bem sucedidos, afinal, ninguém dará conta sozinho de produzir para a demanda inicial, nacional e internacional.
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Eduardo Costa, 07/07/2020
* O texto reflete a opinião do autor, não necessariamente do grupo do Observatório da Medicina.
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