Vacinas, para que te quero!
É possível que as pessoas estejam preocupadas e mesmo confusas com o noticiário sobre vacinas contra o novo coronavírus pandêmico (SARS-Cov-2) nesse contexto de uma corrida onde a colaboração e a disputa andam juntas e marcam a linha de uma ética que precisa, no mínimo, realçar as diferenças onde se escondem a competição ideológica e a escaramuça comercial global.
Esse momento ímpar na história, em que vários produtos em teste estão em fases muito semelhantes de desenvolvimento, favorece comparações tanto tecnológicas como mercadológicas. Um dos alvos dessa corrida é a validação da OMS, a qual precisa se equilibrar para prestigiar a todas que ofereçam a expectativa de eficácia e segurança razoáveis, pressionada constantemente por interesses estratégicos e comerciais de empresas, governos e blocos econômicos, inclusive por meio de cientistas, de técnicos e da mídia mundial dos mesmos.
Assim, num esforço de neutralidade ou imparcialidade, propomos esclarecer aspectos de vacinas em fase mais desenvolvida de estudos clínico-epidemiológicos (fase 3) que podem ser divididas em quatro grupos, segundo características de produção do antígeno, isto é, a fração imunogênica que identifica o SARS-Cov-2 como agente etiológico da COVID-19. (*1)
1 – Vacinas de vírus inativado: O vírus é cultivado em células de laboratório há muito estudadas (que já servem de cultivo para outros vírus vacinais) sofrem o tratamento para inativação, isto é, não se replicarão mais. Esse vacinas são muito seguras, não há possibilidade de produzir uma infecção, podendo ser aplicadas em gestantes e mesmo em pessoas imunodeprimidas. A vacina contra a raiva é a mais antiga desse tipo (inicialmente cultivada em cérebro de carneiros e mais tarde em camundongos, foi descontinuada, quase cem anos depois, por efeitos adversos de resíduos de tecido nervoso). No caso de vacinas bacterianas se utiliza um adjuvante para aumentar a resposta imunitária e se usa mais de uma dose (difteria, tétano, coqueluche) como reforço. Pode ser repetida muitas vezes e em espaços de tempo variáveis. As reações adversas costumam ser locais ou alérgicas.
A primeira vacina contra a Covid-19 a completar as fases 1 e 2 e publicar seus resultados foi a da Sinovac (empresa chinesa), que usa como adjuvante o alúmen. Os resultados preliminares do teste de fase 3, que se realiza no Brasil, em acordo com o Instituto Butantã de São Paulo, foram muito bons em relação à segurança inclusive em idosos. Ela está sendo testada com duas doses e intervalo curto, exatamente por sua segurança e para maior e mais duradoura resposta imunogênica.
O Instituto Butantã anunciou de início que não haverá royalties a pagar para que receba a tecnologia de produção. Espera poder entregar para o Ministério da Saúde 60 milhões de doses, a partir de dezembro.
2 – Vacina que utiliza um outro micro-organismo (vetor) para “expressar” o antígeno vacinal: – são vacinas que por engenharia genética modifica um agente que produzirá o antígeno. São conhecidas como recombinantes sendo a mais usada hoje a da hepatite B. (Uma bactéria ou um fungo/levedura é modificado para tanto.) Em princípio precisam de mais de uma dose para reforçar a imunidade também.
Recentemente, a partir de esforços para produzir uma vacina contra o vírus Ebola e outra para a MERS (síndrome respiratória do oriente médio), foram usados vírus respiratórios humanos benignos (adenovírus do resfriado comum) para expressar os antígenos virais. A mesma tecnologia foi aplicada, agora ao SARS-Cov-2. Os vírus que
foram bem sucedidos para a produção dessas vacinas foram os conhecidos como Ad5 e Ad26. O adenovírus usado é inativado, tornando-se não replicante. Há algumas vacinas em fase 3 de estudos com essa tecnologia:
A – A vacina da CanSino (estatal chinesa), utiliza o Ad5 como vetor. Resultados das fases 1 e 2 já foram publicados, estando em desenvolvimento a fase 3 em vários países. Resultados preliminares mostram ser segura e de imunogenicidade alta. Utilizará também duas doses. A empresa patenteou o processo.
B – As vacinas da Jonhson & Jonhson e da Pfizer utilizam o Ad26 como vetor. Ainda não conhecemos resultados preliminares de fase 3 que estão sendo realizados em vários países. A Jansen (Johnson & Johnson) está recrutando voluntários para teste no Brasil.
C – A chamada vacina russa, é do Instituto Gamaleya. Utiliza na primeira dose o antígeno obtido com o Ad5 ou Ad26 de vetor e na segunda dose com o Ad que não foi aplicado na inoculação inicial, o que produziria uma imunidade maior e mais duradoura. Uma das vantagens seria que se a primeira injeção produzir alguma imunidade relacionada ao vetor poderia neutralizar parte do efeito da segunda, se fosse utilizado o mesmo vetor. Os resultados da fase 1 e 2, agora já publicados, segundo comentaristas da John Hopkins, publicados na Lancet, coloca desafios a outras vacinas. Um deles é que a vacina foi produzida não só na forma líquida, como liofilizada, que permite utilização em condições de conservação mais precárias dos países tropicais mais pobres . (A liofilização foi um importante desenvolvimento de cientistas soviéticos na década de 1960 que usado para a vacina de varíola permitiu a erradicação da mesma no mundo) (*2). Estudos de fase 3 em processo, inclusive no Brasil por acordo com o Laboratório Tecpar.
3 – A vacina em desenvolvimento mais conhecida no Brasil e possivelmente na Europa pelo apoio que teve, usa um adenovírus não replicante também, porém, não humano, de chimpanzé (ChAdOx1). É a dita de Oxford, cujo processo produtivo foi desenvolvido em parceria com a biofarmacêutica britânica AstraZeneca (essa tecnologia ainda não teve
nenhuma vacina aprovada comercialmente). O Governo brasileiro, tomando por base a capacidade produtiva de Biomanguinhos/Fiocruz, adquiriu antecipadamente (antes do início da fase 3) 30 milhões de doses e a tecnologia de produção por 128 milhões de euros, que estariam disponíveis para aplicação em janeiro e dezembro. Recentemente o
estudo de fase 3 dessa vacina foi interrompido por precaução pelo surgimento de um caso grave neurológico em uma das pessoas na qual foi aplicada. Essa vacina anteriormente já teve seu estudo suspenso por problemas de efeitos adversos. (*3)
4 – O último grupo se refere às que modificam a estrutura do vírus reforçando sua capacidade de produzir os anticorpos específicos. São obtidos por ‘espelhamento’ da estrutura do vírus que é RNA para que se comportasse como um vírus de DNA. A partir daí são transferidos para um vetor celular para aprodução dos antígenos capsulares.
Seriam vacinas do tipo mDNA ou mRNA, “m” representando mensageiro. Esse tipo de vacina que a Moderna americana propõe para a Covid-19 ainda não foi aprovada por entidades reguladoras de qualquer país. Porém já cumpriu a fase1 e 2 de testes clínicos.
Há ainda outras vacinas adiantadas menos comentadas no Brasil, inclusive mais duas chinesas. Desconhecemos se alguma usa o SARS-Cov-2 atenuado, método de vacinas virais como da febre amarela e do sarampo que dão longa imunidade com dose única. Outras vacinas em pesquisa são as chamadas ocas, isto é utilizam apenas a capa do vírus
ou peptídeos da mesma (VLP). Mesmo com a expectativa de sucesso de mais de uma vacina, será pouco provável que produzam imunidade duradoura e, também que sejam igualmente eficientes em todos os grupos de idade. Isso significa que será muito importante implementar uma vigilância epidemiológica rápida e efetiva.
Portanto, cremos que nenhuma delas, a não ser que uma mutação viral atenue de maneira importante o SARS-Cov-2 circulante no Brasil, eliminará isoladamente a COVID19 do Brasil de imediato. Primeiro porque as quantidades necessárias farão estender o período a mais de uma ano para imunizar a todos os grupos de idade e, segundo, porque a vigilância epidemiológica e uso da vacina na contenção de surtos a cargo do SUS precisará ser eficiente.
Eduardo de Azeredo Costa
11/9/2020. Rev 28/09 para OM/ENSP/Fiocruz.
Notas:
*1 – Esse artigo não explora a resposta imunológica prevista ou em estudo para as vacinas citadas. Para uma visão mais acessível veja-se o comentário no artigo de Bonotino, C, da Sociedade Brasileira de Imunologia citado nas referências.
*2 – Apenas por recordação histórica importante a vacina da varíola foi obtida usando um outro vírus, o da doença de gado bovino, chamado de vaccínia, a partir da observação de que ordenhadores de vaca que pegavam a enfermidade e não adoeciam de varíola. A imunidade é portanto cruzada. Era transferida braço a braço inicialmente e depois produzida a partir de escarificações com o vírus em bezerros, com subsequente tratamento. Hoje é produzida em ovos.
*3 – Há outra possibilidade para a produção da vacina com outros vetores virais: usar o vírus vivo, isto é, replicante, o que significaria que infectaria a pessoa inoculada e no seu organismo produziria o antígeno viral da COVID-19. Os riscos a desaconselham.
Referências:
Bonorino, C – Vacinas contra o SARS-Cov-2: Onde estamos, onde precisamos chegar, e como fazer isso. Blog da Comunicação da SBI. www.sbi.org.br 24 de junho de 2020.
Costa, E A – Vacina à vista! Cooperação ou Concorrência? http://observatoriodamedicina.ensp.fiocruz.br/vacinas-a-vista-cooperacao-ou-concorrencia-por-eduardo-costa/
Costa, E A – A vacina russa. https://horadopovo.com.br/a-vacina-russa/
Gao,Q et al – Development of an inactivated vaccine candidate for SARS-CoV-2. Science 80 2020. https://doi:101126/science.abc1932.
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2020. Disponível em: https://observatoriohospitalar.fiocruz.br/conteudo-interno/biblioteca-sobrebiosseguranca-hospitalar-na-pandemia-de-covid-19-2652020
PS – Esse artigo de divulgação foi lido e comentado por Silvio Valle, especialista em biossegurança, pesquisador da Fiocruz e por Jorge Kalil, especialista em imunologia, professor da USP.
PS – A literatura pode ser estendida e suprimida para divulgação.