A Medicina, a TI e o que mais?

Não sei se é necessário apresentar Atul Gawande, mas podemos dar um breve resumo: cirurgião norte-americano, do Brigham and Women’s Hospital em Boston, e professor de cirurgia na Harvard Medical School, e saúde pública na Harvard School of Public Health. Gawande se destacou no começo deste século no grupo que liderou o movimento pela segurança do paciente em ambiente cirúrgico, participando da criação e difusão dos checklists em cirurgias e procedimentos médicos, aos moldes do utilizado pelas práticas de segurança na aeronáutica. Em 2009 lançou “The Checklist Manifesto: How to Get Things Right” (Metropolitan Books, Holt and Company). Na sua vida acadêmica tem vasta produção de artigos científicos. Mas, no mesmo ano da publicação de seu livro, ingressou como articulista regular no caprichado semanário “The New Yorker”, onde escreve para o público em geral sobre os problemas da medicina contemporânea e o sistema de saúde norte-americano. E é esse Gawande que nos interessa no momento, já que o foco das lentes do nosso ObMed busca analisar e falar não de medicina, mas da medicina.

Seus artigos são extensos e há muita reflexão pessoal. Sabiamente, deixa sempre perguntas sem uma melhor resposta. Apresenta dilemas e aponta alguns caminhos possíveis. Sempre com o importante detalhe de que ainda continua na prática da medicina, atuando como cirurgião, revendo seus próprios comportamentos, e com clara percepção do paciente como o outro sujeito da relação, sendo verdadeiramente quem importa. Seu último livro “Mortais. Nós, A Medicina e o que Realmente Importa no Final”, lançado no Brasil em 2015 (Ed. Objetiva) aborda as difíceis questões do limite terapêutico e da finitude; é uma prova de sua sensibilidade e do seu ethos profissional.

No entanto, Gawande pertence ao modelo de profissional liberal típico da medicina como serviço num sistema de mercado, tão característico dos EUA. Não há como não perceber o seu zelo frente ao risco de dano ao paciente, convivendo com sua busca do que considera ser o melhor modelo de sistema de saúde, aquele que entregue bons serviços ao consumidor (o médico clássico da obra de Eliot Freidson).

Em 2012, um de seus artigos para a “The New Yorker” daria para ocupar um seminário: “What Big Medicine Can Learn from the Cheesecake Factory” (ver https://www.newyorker.com/magazine/2012/08/13/big-med ). Dentro da ótica de mercado do sistema de saúde norte-americano, ele explora as deficiências e vícios desse mercado na entrega de seus serviços. Seu benchmarking (pra ficar na mesma linguagem..) é a cadeia de restaurantes “Cheesecake Factory”, que conta com uma imensa rede de lojas em vasto território, uma grande variedade de produtos no cardápio e altíssimo nível de satisfação dos seus usuários, os consumidores.

Buscando esse modelo, Gawande fundou o Ariadne Labs, em Boston, ainda em 2012. Um centro de pesquisa com multi-especialistas voltado à prospecção e implantação de soluções inovadoras para o sistema de saúde clivando a relação da segurança para o paciente com a custo-eficácia e viabilidade financeira desses novos processos. Agora, em junho de 2018, foi contratado para dirigir a nova sensação do mercado de saúde dos EUA – uma promessa de ‘revolução no sistema’ num projeto anunciado no início do ano pela união de jóias do capital, a Amazon, a Berkshire-Hathaway e o JPMorgan.

https://www.businesswire.com/news/home/20180620005747/en/Amazon-Berkshire-Hathaway-JPMorgan-Chase-appoint-Dr

Cruzando conceitos, sua definição de valor se aproxima da utilizada por Porter¹, “resultados de saúde x dólar gasto” , e sua preocupação central é o melhor resultado alcançado, com menores danos ao paciente, atrelado à melhor relação custo-benefício; a visão é a de eficiência. Gawande admite que “muitos sistemas de saúde, com fins lucrativos e sem fins lucrativos, compartilham este objetivo: medicina de linha de produção em grande escala”. Estaríamos, então, ainda em uma etapa da industrialização da medicina. Se assim for, o problema me parece maior do que analisa o autor, um pouco fora do foco de suas conclusões – já que estamos falando do país onde mais se estuda e se desenvolve tanto as tecnologias médicas quanto as de gestão. Como explicar a queima de mais de 3 trilhões de dólares anuais, num sistema com profunda inequidade, mas com os maiores gastos per capita e os piores indicadores dos países desenvolvidos? Diante disto, detalhando os processos na produção do “Cheesecake Factory”, ele espera encontrar a solução, como outros, nos processos de gestão. “Use a quantidade certa de mercadorias e mão de obra para entregar o que os clientes querem e não mais. Qualquer coisa mais é desperdício e desperdício é lucro perdido.”

Em toda a sua análise desse sistema, algo importante fica notadamente de fora. Ele explana os arrochos e apertos nas relações de trabalhos na área da saúde, com sobrecarga de responsabilização, burnout, ‘enxugamento’ de equipes, estandartização de processos, informatização, uso de ‘subcontratados’ e ‘terceirizados’ da Índia, tudo faz parte da sua reflexão. Na outra ponta, o que se busca em sua visão: os resultados para os pacientes, focando nas melhorias dos processos são a grande meta. Ou seria apenas metade da meta? O que justamente não aparece é de fato notável. Quando se fala de custos… redução, controle, melhorar a ‘cadeia de valor’, relação ‘ganha-ganha’… quando estamos melhorando a eficiência do sistema, com todos esses ‘apertos’ na máquina, nos processos, na gestão, acertando no cuidado, com bons resultados, estamos controlando os custos para quem? Onde está, em sua análise, a dimensão do excedente de lucros que as grandes corporações financeiras retiram do sistema ao apertar os cintos de todos e desprezar aquilo que considera desnecessário? Quando se fala em economia de custos, com quem ficou e quanto o investidor lucrou com isso?

No seu último artigo para o magazine semanal, há uma semana, “Why Doctors Hate Their Computers” temos como evidenciar melhor essa questão.

https://www.newyorker.com/magazine/2018/11/12/why-doctors-hate-their-computers?_branch_match_id=588775382610858677

Gawande descreve como se deu a chegada da Tecnologia de Informação (TI), com a implantação do programa de informatização na Partners HealthCare em 2015, empresa com setenta mil funcionários – espalhados por doze hospitais e centenas de clínicas na Nova Inglaterra/EUA. Ao custo de US $ 1,6 bilhão, o processo de adaptação de todos foi lento e os resultados só foram notados com o tempo, e muito ainda se espera. Mas o retorno desse investimento não está nos comentários do artigo. Como essa empresa se constituiu e concentrou tanta riqueza ao longo das últimas décadas, tornando-se uma das gigantes do ramo? Qual contradição podemos perceber num sistema injusto e perdulário, anunciado como prestes a quebrar, mas dominado por grandes corporações que tiveram crescimento exponencial nas últimas décadas?

Mas o novo modelo de oferta de serviços médicos, controlado pela TI, é anunciado como o caminho inescapável para esse sistema.

Há grandes mudanças já perceptíveis. A maior utilização pelos próprios pacientes de seus dados do prontuário, com acesso ao seu histórico permitindo melhor acompanhamento e evitando redundância e repetições de inúmeros processos diagnósticos e terapias desnecessárias. O sistema informatizado assumindo diversas atividades que eram delegadas a terceiros e, passado um longo e desgastante período de aprendizado e ajustes, a ‘relação médico-paciente’ está toda ali, sem outros intermediários. Gawande ressalta que a informatização não deixou mais tempo livre para esse médico, apenas mudou o modelo de sua atividade; ele dispende mais tempo para o registro de seus atos, perde muito mais tempo nas atividades relacionadas ao registro de informações, principalmente levando tarefas decorrentes da informatização para casa. Os relatos de desgaste físico e emocional são muito frequentes. Mas melhorou a segurança e aumentou a produtividade. O atendimento estandartizado abriu mais vagas nas agendas. E as possibilidades de arrocho na gestão e tratamentos desses dados de saúde e extração de excedentes financeiros (o que é relatado sempre como ‘redução de custos’) são infinitas: o exemplo de atendimento aos prontuários por médicos de Mumbai, na Índia, é bem ilustrativo da capacidade do ambiente virtual.

Mas há a impressão de que esse estranhamento se dá na geração que teve de se adaptar. Na que está vindo por aí, tudo isso já será natural. Gawande se apóia num modelo de darwinismo social para justificar que a adaptação requer mutação e seleção. A TI sozinha não cria, sendo incapaz para a mutação. O trabalho médico, dentro de suas possibilidades artesanais, pode ser altamente inventivo. Sem o olho do sistema, informatizado, o trabalho médico mantinha essa prática artesanal, e apenas contribuía com a mutação. Agora, somente os melhores resultados demonstráveis serão selecionados pelo sistema.

Adaptação, dinamismo, segurança e resultados.

O que esse sistema apresenta como característica e possibilidades, a meu ver, talvez esteja nas entrelinhas de seu texto. Ele ainda cita Frederick Winslow Taylor e muito de seu texto sobre a Cheesecake Factory nos inspira a pensar no modelo que aprendemos de industrialização da saúde, nos textos em enxergamos o sistema como Complexo Médico Industrial². A frase citada por Taylor, parece nos dar a dica: “No passado, o homem era o primeiro; no futuro, o sistema deve ser o primeiro”. Ao que Gawande conclui: “Estamos nesse futuro, e o sistema é o computador”. Será?

O que me parece ausente dessa análise é justamente a percepção do sistema. A percepção de que não podemos mais enxerga-lo como o modelo industrializado de consumidores no meio da balança, entre vendedores de insumos e serviços e aqueles que financiavam essa compra. Com a financeirização³ do sistema, o consumidor está numa ponta. No outro extremo está desaparecendo a dicotomia, o modelo financeiro abarcou a tudo, e tomou posse do financiamento do consumo e da produção e venda de insumos – é o que anuncia a proposta da Amazon e Cia. Nem mesmo a presença da relação médico-paciente é fundamental. A gestão financeira do consumo em saúde passa a vê-lo também com gasto. A TI não é o sistema. Ela é o instrumento indispensável para, nessa complexa e paradoxal relação, manter os interesses do sistema. Com a garantia da segurança/valor, expandir a extração do excedente.

 

Luiz Vianna

 

  1. PORTER, ME. What Is Value in Health Care? N Engl J Med 2010; 363:2477-2481  https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMp1011024
  2. Para uma boa revisão, ver MENDONÇA, ALO; CAMARGO JR. KR. Complexo médico-industrial/financeiro: os lados epistemológico e axiológico da balança. Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 22 [ 1 ]: 215-238, 2012. http://www.scielo.br/pdf/physis/v22n1/v22n1a12.pdf
  3. SESTELO, JAF et al. A financeirização das políticas sociais e da saúde no Brasil do século XXI: elementos para uma aproximação inicial. Econ. soc. [online]. 2017, vol.26, n.spe, pp.1097-1126. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0104-06182017000401097&lng=pt&nrm=iso

6 Replies to “A Medicina, a TI e o que mais?”

  1. Marcelo Magalhães

    Excelente reflexão de quem ha muito milita no tema e percebe com singular capacidade, que as ingerências interessadas na magnitude da circulação de dinheiro ditam as regras a serem seguidas pelos provedores e desejadas pelos pacientes. Mas é certo que tudo está dentro da lógica de uma sociedade hiperconsumista líquida, as reflexões de Gawande são inequívocas neste aspecto, porém Bauman prevê o seu fim, através da filosofia. Se utilizando da construção de Foucault com o cuidado de si, talvez tudo se torne instrumento, não para criar lucro, mas para produzir riqueza de vida.

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  2. Carlos

    O SUS ou o direito social na saúde, nos termos do sociólogo Chico de Oliveira, seria grosso modo o meio para construir as bases do “antivalor” neste setor e na sociedade.
    Na sua opinião Luiz Vianna, o conceito de “valor” de Porter procura se apropriar corretamente do movimento de valorização desse capital particular (saúde) ou tem apenas o interesse de construir uma práxis para “manter os interesses do sistema” – nos seus termos?

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    • Luiz Vianna Resposta do autor

      Carlos, Porter não deixa dúvidas de que é um gestor para o capital. Já professor consagrado da Harvard Bussiness School, chega à área de saúde no início do século XXI com o livro Redefining Health Care. Creating Value-Based Competition on Results. Na época, declarou-se desafiado pelo volume de gasto dos EUA em saúde (sempre em torno de 18 a 20% do PIB), com resultados ruins. Veio ao Brasil, com patrocínio do dono da Amil à época, Edson Godoy. Era a sensação no meio da gestão privada da saúde. Seguiu publicando sua teoria do ‘Ganha-ganha’, da estratégia para o ‘triple-AIM’ e avançou na sua definição de ‘valor em saúde’. Já havia, desenvolvido por oftalmologistas nos hospitais da Nova Inglaterra o conceito de Medicina Baseada em Valor (MBV). Com vários modelos diferentes de aplicação, a questão central é a substituição do pagamento por volume – o fee-for-service (FFS), para o pagamento por processos – resultado final, o valor. O que eu arrisco é a associação do primeiro ao modelo industrial, de consumo de insumos, e o segundo ao modelo financeiro, de gestão complexa de desempenhos.
      Porter seguiu, criando o Consórcio Internacional de Medição de Resultados de Saúde – ICHOM (http://www.ichom.org/) em associação com o The Boston Consulting Group e o Karolinska Institutet in Stockholm. Então temos um forte grupo de pensamento estratégico associado a um instituto de pesquisa para validação de resultados e certificação de práticas. Nesse ponto que fundamento minha tese de que a Medicina Baseada em Evidência foi ‘sequestrada’ pela MBV, com estratégicos interesses financeiros.

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      • Carlos

        Se a medicina baseada em evidência (que já era problemática devido às dificuldades de fordização do processo de trabalho médico e da equipe de saúde) foi sequestrada pela medicina baseada em valor (que é problemática por subsumir a “ética da medicina” aos interesses financeiros (“a ética estilhaçada”), da ótica científica, o quê afinal de contas foi criado pelos gestores do capital da saúde privada?

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        • Luiz Vianna Resposta do autor

          É isso… mas como a empresa da medicina é muito grande na sociedade, o que passa, ao final das contas, é que o grande sistema funciona. Apresenta-se o ‘progresso’ e os sucessos. As imperfeições, o ruído, a inequidade, as grandes carências, os sequestros episódicos “nas crises” das poupanças públicas e grandes benesses do Estado continuam. Participei de uma discussão sobre a sustentabilidade do sistema.. nesse ponto, percebemos que há dois interesses bem distintos: quem vem da corrente liberal enxerga a solução da sustentabilidade como a necessidade de acertar a gestão, para justificar e garantir a retirada de excedentes mostrando bons resultados (os resultados serão sempre dentro dessa ótica de ‘valor’, metas clínicas objetivas x custo-eficácia), um modelo mais utilitarista; do ponto de vista da visão orgânica do SUS, há uma clara acepção mais principialista, que poderia ser justificada a partir do próprio Rawls, onde os valores iniciais seriam as características inegociáveis do sistema, equidade e justiça social para autonomia e a beneficência, através dos conceitos de integralidade e universalidade. Logo, a retirada de excedente desaparece do horizonte; o gasto social será justificado pelas compensações e retornos macro-econômicos do próprio desenvolvimento. São duas visões, a meu ver, incompatíveis entre si.

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  3. José Sestelo

    O caso da Amazon (e da Google também) merece destaque por que, por um lado revela o drama do sistema estadunidense que não consegue se desvencilhar dos elevados custos de transação turbinados pelos inúmeros intermediários, pareados com resultados sanitários abaixo da média. As empresas de ponta tentam usar a sua inteligência corporativa para atenuar os efeitos desse elemento estrutural, mas, como você disse, não conseguem sair da lógica do sistema econômico onde elas são protagonistas de primeira linha.

    A referência teórica usada de maneira recorrente por todos eles (embora nem sempre de maneira explícita) é o Michel Porter e seus modelos. Uma referência muito ruim, muito aquém da capacidade cognitiva e operacional de empresas como a Amazon, a Google e mesmo do Gawande que é um sujeito que sabe as consequências práticas do fracasso da medicina tecnológica de alto custo.

    O problema é que o “porterismo” virou uma ideologia e deixou de ser apenas uma referência teórica ruim. Uma ideologia dominante e que parece combinar perfeitamente com a lógica da dominância financeira. A eficiência está obviamente a serviço do lucro dos controladores de processos não a serviço da saúde das pessoas.

    O uso da IA parece que tende a potencializar os controles sobre variáveis, indicadores de saúde/doença, apenas para maximizar novas oportunidades de negócios para empreendedores que não guardam quaisquer relações com políticas sociais.

    O novo Big Data de dados de prontuários médicos é um filão que será disputado a ferro e fogo, não por acaso, Amazon e Google saem na frente. É a essência dos seus modelos de negócios.
    Aqui no Brasil a AMIL tem o seu braço de TI na OPTUM com IA a pleno vapor e agora depois da morte de Edson Bueno, o novo CEO (potencial candidato a ministro) terá a possibilidade de ampliar sua área de influência sobre os dados da rede assistencial pública. Isso sim será a festa dos gestores de Big Data em saúde.

    Concordo plenamente com as suas conclusões! Penso que vivemos uma tendência a hiper fragmentação dos processos assistenciais com aumento dos custos globais do sistema às expensas do trabalho e a favor do capital. Qual será o limite desse processo?

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