Este Observatório foi criado com a finalidade de retratar os fatos da medicina que estão à nossa vista, tentando minimamente analisa-los com os instrumentos e fundamentos do pensamento acadêmico. Propõe-se também, sinalizar o que parece estar despontando no horizonte, como possibilidades de futuro. Alguns fatos no céu desta semana:
I – A Tecnologia de Informação (TI) vem produzindo diariamente uma nova cultura. São inúmeras as feiras e encontros de desenvolvedores de processos de gestão, de aplicativos, de startups, crowdsourcing … as soluções da Big Data para o sistema. A grande maioria dessas soluções está fortemente inspirada pela lógica de mercado, enxerga a saúde como oportunidade de negócio, e traz em seu bojo a lógica da competitividade entre empresas, o estímulo ao empreendedorismo individual, contrariando a visão solidária de um sistema que busca equidade e universalidade. Num artigo recente, comentamos como as potencialidades da gestão destes dados podem estar associadas ao modelo financeiro de valor como eficiência – resultados clínicos atrelados à custo-eficácia. http://observatoriodamedicina.ensp.fiocruz.br/a-medicina-a-ti-e-o-que-mais/
II – A TI invadiu a prática médica, inicialmente com suporte de informação técnica, disponibilizando guidelines, protocolos e algoritmos para a decisão clínica em tempo real e vem sendo utilizada já em larga escala no mundo e no Brasil. Para além disso, novos devices, dispositivos, sensores, monitores, detectores, leitores… uma infinidade de apetrechos já nos leem, desde a base biológica, sadia ou deteriorada, até as variações fisiológicas e funcionais mais delicadas, deixando uma expectativa de possibilidade de escaneamento completo da objetividade do indivíduo com resultante tradução numa coleção de dados. Um grande especialista em medicina do futuro, nos EUA, já vaticinou: “Chegou a hora de digitalizarmos o paciente” ¹. Em breve, voltaremos com um artigo especificamente sobre esse tema.
III – O governo de Cuba anunciou esta semana a retirada dos seus médicos do Programa Mais Médicos (MM). Segundo a nota oficial, do Ministério da Saúde cubano, a decisão é irrevogável e está diretamente relacionada às declarações do novo presidente eleito do Brasil, que colocou em “dúvida a dignidade, o profissionalismo, e o altruísmo dos colaboradores cubanos […] que prestam serviço em 67 países” ². De pouco mais de 18 mil vagas do programa, há 8.332 ocupadas por cubanos (45%), concentrados em 1.575 municípios, a maioria com menos de 20 mil habitantes. É previsto um impacto de desassistência básica de saúde sobre mais de 28 milhões de pessoas, já que um dos três itens do MM é a provisão de médicos em locais desassistidos³, justamente para os programas de prevenção, atenção básica e saúde de família. Com as políticas já anunciadas no horizonte político, o que se espera é a “ampliação subsidiada da rede assistencial privada” 4.
Ao pensar nesses fatos da medicina, a nossa semana nos faz lembrar de recente filme do cinemão norte-americano, Elysium (Tristar Pictures, 2013) do diretor Neil Blomkamp. A ficção se passa no ano de 2154, onde o mundo divide-se definitivamente entre uns poucos muito ricos e muitos miseráveis. Os primeiros vivem em uma estação espacial orbitando a terra, Elysium, onde tudo é perfeito e limpo, e o ambiente artificial nos remete aos condomínios de mansões e palacetes suntuosos de milionários que já conhecemos. O restante da humanidade sobrevive na Terra, no caos urbano das megalópoles, totalmente favelizadas. O filme só nos mostra a Los Angeles como imaginada nesse futuro, com cenas gravadas em locações em comunidades no México, mas tem toda a estética do abandono das comunidades metropolitanas brasileiras e bem poderíamos estar no Rio ou São Paulo.
Curiosamente, não por acaso, esse jovem diretor sul-africano, mas formado em cinema em Vancouver, salienta em seu filme a tecnologia e o atendimento médico.
A maior questão destacada pelo roteiro é justamente a diferença entre o que é oferecido para os habitantes de Elysium e o que está disponível para os que ficaram na Terra. Para os primeiros, tudo. O sonho realizado das promessas da tecnologia científica: cada residência tem seu próprio centro médico, um aparelho que diagnostica e cura instantaneamente todas as doenças. Com a rapidez, precisão e facilidade de um simples scanner. Para os habitantes miseráveis que não tem acesso à estação espacial, as cenas mostram o que já conhecemos, num ambiente hospitalar caótico de emergência superlotada e que assume não poder resolver os problemas. Além disso, há todo um aparato de normas de segurança em torno do satélite, com violações de direitos fundamentais, que se justifica pela necessidade de se proteger o acesso restrito a esse sistema.
Sem entrar no mérito das questões de estética cinematográfica, poderíamos encaminhar nossa crítica à revisão epistemológica da ideologia do poder absoluto da tecnociência. Mas o que salta aos olhos é a questão do acesso. Estamos falando de cinema da maior potência econômica do mundo. O que se destaca no filme, alegoricamente, é a inequidade do seu sistema de saúde. É isso o que está na cabeça do diretor ao falar ao público norte-americano, quando apresenta as possibilidades da tecnologia de cura que são promessas para o futuro. Ela não é para todos, e a distância entre os que podem tudo e os que ficam no caos está prestes a se tornar algo incomensurável.
Assistir esse filme hoje e pensar que o modelo desenhado pelos gestores desse sistema serve de inspiração para toda uma geração de brasileiros e seus MBAs em saúde é o mais importante ponto na reflexão que nos conecta aos três fatos em destaque nesse post.
As possibilidades do desenvolvimento tecnológico da era digital são realmente imensas. Pensar na resolução da totalidade dos problemas médicos e da saúde com esse avanço no conhecimento ainda está no campo da ficção. Embora um horizonte utópico, ele está na mira de todos os que discursam sobre essas ciências. No entanto, a visão de totalidade, na busca de equidade na oferta de serviços está descartada e fora da agenda. Classificada frequentemente como utópica, a equidade saiu do ideário da política dos que se apossaram do sistema, que caminha para uma divisão cada vez mais contrastante entre dois mundos distantes.
Luiz Vianna
1- Eric Topol. The Criative Destruction of Medicine: how the digital revolution will create better health care. Perseus Books. NY, 2012.
2- https://oppceufc.wordpress.com/2018/11/15/declaracao-do-ministerio-de-saude-publica/
3- Brasil. Lei nº 12.871, de 22 de outubro de 2013. Institui o Programa Mais Médicos, altera as Leis n. 8.745, de 9 de dezembro de 1993, e n. 6.932, de 7 de julho de 1981, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2013; 23 out.
4- Scheffer, M. Para muito além do Programa Mais Médicos. Ciência & Saúde Coletiva. 21(9):2664-2666, 2016.