O ano começou com um esperado conflito na classe médica, entre o Conselho Federal de Medicina (CFM) e os milhares de profissionais, espalhando-se rapidamente para os representantes destes em cada estado do país, os Conselhos Regionais, que se levantaram contra uma decisão normativa do órgão que os coordena.
Esperado, ao menos, por quem já previa que a chegada e o avanço das novas tecnologias na área de saúde iriam encontrar um sistema de saúde que tem de tudo. Menos as características de um sistema. É desorganizado, desigual, comporta ilegalidades, inequidades e interesses extremamente distintos. Ao fim, os resultados que entrega a cada cidadão, entre os duzentos milhões da nossa população, são também extremamente distintos. O impacto vai se fazer sentir por todos.
Mas, dentro da ampla questão da saúde, voltamos a focalizar na medicina.
O motivo do conflito, a nova regulamentação do CFM para a Telemedicina. Ou o problema seria a Teleconsulta?
Para fazermos uma reflexão sobre o ocorrido, devemos fazer uma panorâmica sobre alguns fatos. Tentar refletir primeiro sobre os interesses de cada parte e de como se desenvolveram ao longo desses últimos meses as condições para o que podemos chamar de Telenovela. Então, recapitulando…
O enredo começa no final do mês de janeiro com a divulgação, em mídia digital de redes sociais, de um pequeno vídeo e imagens anunciando o lançamento do serviço de Teleconsulta do Hospital Abert Einstein, de São Paulo. https://www.einstein.br/Pages/home-telemedicina.aspx (Ver exemplo em https://www.youtube.com/watch?v=jtjpt0Duzco )
O texto, que circulou amplamente em grupos de WhatsApp, trazia o anúncio de teleconsulta oferecida pela equipe do hospital, em diversas especialidades. O custo de 400 R$ poderia ser pago em três vezes, no cartão de crédito, ou à vista. Sem convênios com planos ou seguros de saúde.
Curiosamente, para dar tonalidade ao teledrama, o CFM divulga na mesma semana um comunicado do lançamento da RESOLUÇÃO nº 2.227/2018, justamente para regulamentação da Telemedicina ( http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=28059:2019-01-29-15-13-33&catid=3 ), juntamente com a chamada para um Fórum sobre Telemedicina, na sede da entidade em Brasília, http://forumsaudedigital.com.br/cfm-vai-divulgar-nova-resolucao-sobre-telemedicina-nesta-quinta-feira/
Ainda antes deste seminário, comentamos essa questão aqui no ObMed. http://observatoriodamedicina.ensp.fiocruz.br/o-tempo-da-medicina-virtual/
A consequência imediata foi uma infinidade de mensagens comentando os dois fatos. Em todos os tipos de mídia, principalmente nas redes sociais. O tom dos comentários variou desde a mais básica preocupação com o esvaziamento dos consultórios particulares até ações como a necessidade de se “conquistar o CFM” (!), manifestada informalmente por representantes dos Conselhos Regionais de vários estados. Então, o que se viu, foi o ressurgimento do clima eleitoral para os Conselhos Regionais, realizados em todo o país em 2018, que teve intensa participação de política partidária e muitas das características do pleito presidencial. E com direito a fake-news.
Formalmente, os Conselhos Regionais lançaram notas à imprensa e nas mídias sociais, em uníssono, negando a participação em reuniões para a elaboração da Resolução 2227/2018. Como segue alguns:
E protocolaram carta, assinada por todos os presidentes dos Conselhos Regionais, entregando ao CFM a seguinte reivindicação, após alguns “Considerandos”:
“Vimos mui respeitosamente requerer o adiamento da Resolução 2227/2018, até que uma ampla discussão legitime a regulamentação e implantação da Telemedicina” (grifo nosso)
Também foi divulgada nota do Ministério da Saúde e de vários sindicatos regionais.
Então, no dia 6 de fevereiro, O CFM recebeu os representantes dos conselhos regionais e lançou nota esclarecendo que deixará um prazo de 60 dias para receber sugestões à Resolução e rediscutir em sua plenária, no princípio de maio. http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=28067:2019-02-06-20-02-20&catid=3
No dia seguinte, deu-se enfim o seminário, que pode e deve ser assistido na íntegra https://www.youtube.com/watch?v=2ReDNPbkVZQ
Aqui é possível esclarecer algumas questões. Algumas, talvez, além do que pretendiam os organizadores:
1- Na primeira palestra, o Dr. Aldemir Humberto Soares, da Câmara Técnica de Informática em Saúde do CFM, antes de apresentar a Resolução ponto a ponto, declarou que não tem conflitos de interesse e desmentiu que seja dono ou ligado a empresas de telerradiologia. Esclareceu que as reuniões para a confecção da Resolução duraram mais de três anos, e os representantes dos Conselhos Regionais foram eleitos e tomaram posse ao final do ano, após a última plenária deliberativa, assim, não participaram da mesma.
2- Por conta disso, de forma não usual, o CFM já lançou a Resolução com prazo estendido de 90 dias para a sua implantação, esperando que haja acertos e correções a serem realizadas com os Conselhos Regionais.
3- A Resolução anterior que regulamentava a Telemedicina já tinha 16 anos. Fora “lançada antes do iPhone”.
4- Antes das diversas palestras técnicas do evento e de entrar propriamente no detalhamento de artigo por artigo da nova Resolução (ao todo são 23 Artigos que merecem uma análise à parte¹), logo no início de sua apresentação, a primeira frase que ajuda a entender parte de todo o problema. O Dr. Ademir deixa escapar que o lançamento da Resolução “acabou dando alguns vieses de desentendimento no mercado..”. Relatando seus detalhes, mais à frente volta a dizer que “depois de três anos trabalhando em cima dela, nós precisávamos vir ao mercado…” e que “a medicina tem de trabalhar isso de uma forma ética, com controle […] estamos num mercado que não tem nenhum controle”.
Assim, então, fica mais claro o entendimento de alguns pontos.
A telemedicina, conforme definição da própria Resolução, “exercício da medicina mediado por tecnologias para fins de assistência, educação, pesquisa, prevenção de doenças e lesões e promoção de saúde”, já existe há vários anos no país.
Diversos trabalhos já são desenvolvidos nesse campo desde a década de 1970, muito antes da Internet. Serviços de telessaúde, com educação a distância, informação, consultorias, suporte técnico, web-conferências e mais recentemente a teleinterconsulta, o telediagnóstico e a telecirurgia vem sendo realizados por entidades públicas e privadas, por programas universitários e secretarias regionais de saúde. Já houve o I Fórum de Telemedicina do CFM, em 2016, onde foram apresentados todos esses trabalhos. Já existe uma Rede Universitária de Telemedicina², com mais de uma centena de unidades em todo o país. As apresentações técnicas do II Fórum deram conta de mostrar os avanços nacionais e compará-los com os modelos existentes em outros países, como o modelo implantado no Reino Unido, pelo NHS, e o de Portugal.
A questão principal do enredo é a teleconsulta. E para entender toda a trama dessa telenovela, temos de atentar para o que foi dito sobre o mercado. O que está se discutindo, por enquanto, não é segurança do paciente, segurança da informação do paciente, relação médico-paciente, qualidade ou acurácia do diagnóstico… o que incomoda é a consulta à distância. Aquela que poderá ser distribuída por grandes corporações como um serviço em série, se tornar uma commodity. Aqui está o verdadeiro cerne do conflito atual. Onde se estruturam as novas modalidades de conformação/exploração das relações de trabalho. Nesse sistema que tem como marca mais característica a inequidade, a consulta a 400 R$ não vai ser para todos, mas pode abalar grande parte dos consultórios das grandes metrópoles do país. Num outro extremo, a vulgarização da oferta de consultas on-line a baixo preço poderá desvirtuar totalmente qualquer projeto de assistência integral do SUS. Não tardará, poderemos ter grandes “call-health-centers”, vinculados ou não aos planos de saúde, ou talvez diretamente à Amazon, ao Peixe-Urbano ou afins.
O representante do CFM confessa que estamos num mercado sem controle. Há várias décadas, um radical pensador austro-húngaro, chamado Karl Polanyi, argumentava que o mercado estava longe de ser natural; que é o intervencionismo contínuo das forças e do poder das estruturas que dominam o governo, e assim o Estado, que delimitam com políticas objetivas essa ‘liberdade’ do sistema. É preciso entender isso, para entender porque o Hospital Albert Einstein lançou sua Teleconsulta poucas semanas antes da resolução; e apreciar o quão brilhante foi a apresentação dos seus serviços no II Fórum em Brasília, na presença de recém-eleitos deputados federais, da “bancada da saúde”.
Neste final de semana, um hospital de Fortaleza/Ceará, diminuiu o número de cardiologistas no plantão noturno de sua unidade de atendimento de emergência, pois contratou os serviços de Teleinterconsulta (auxílio médico a médico) do Hospital TotalCor, de São Paulo. O Sindicato dos Médicos do Ceará lançou nota questionando a medida e a validade da Resolução 2227/2018, que ainda não estaria em vigor. https://www.sindicatodosmedicosdoceara.org.br/index.php/noticias/451-comunicado-sobre-a-informacao-de-que-os-cardiologistas-do-hospital-monte-klinikum-poderao-ser-substituidos-pela-telemedicina
O hospital defendeu-se em nota divulgada nas mídias sociais dizendo que “as mudanças recentemente anunciadas aos médicos se referem apenas à redução do número de plantonistas cardiológicos em alguns horários de baixa demanda, embora continue a existir retaguarda permanentemente na unidade coronariana no hospital. Ainda nestes horários, os pacientes contarão com um médico preparado para emergências, que poderá acionar outro médico da unidade coronariana e também atuar remotamente com a equipe especializada de um dos principais centros cardiológicos do país, o TotalCor, em São Paulo.” E que esse tipo de assistência já está regularizado desde a anterior e antiga resolução de Telemedicina, que data de 2002. O que, de fato, procede.
Assim, a telenovela apenas começou; aguardemos os próximos capítulos.
Luiz Vianna
1- Ver a Resolução 2227/2018 do CFM em https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2018/2227
2- Ver http://rute.rnp.br/
Novidade alguma. Apenas um questionamento: como palpar um abdômen, ou fazer um toque retal, ou ginecológico por telefone? Vamos abolir a cadeira de semiologia dos cursos de medicina?
Ótimo e lúcido texto, Luiz.
Enquanto isso, funciona já há anos um serviço de telecardiologia (reconhecido até pela OMS) no SUS, idealizado pelos nossos amigos mineiros, que já salvou e cuida de muita gente. O texto dessa resolução precisa ser aprimorado.
Que saiam os empresários e entrem em cena com destaque os médicos comprometidos com sua profissão. Estamos de olho. Abraço!
Prezada Angélica, concordamos que será pelo caminho do conhecimento que se encontrará a melhor solução. Sempre foi assim. O conhecimento que os médicos buscarem voltados para atingir o que é a finalidade da medicina; o conhecimento que os pacientes buscarem para conseguir o que realmente importa para sua saúde. Se ambas as partes saírem da relação de consumo e se voltarem para a finalidade da medicina, teremos sempre a melhor solução. Parabéns pelo trabalho.
Ótima reflexão, Luiz!!!
O II Fórum de telemedicina evidencia falhas no processo de discussão no seu uso como modalidade de prestação de serviços de saúde, cujos benefícios para os usuários, prestadores de serviços e sistemas de saúde tem sido largamente comprovado em todo o mundo. Porém, como em inúmeros outros campos, as Tecnologias da Informação e Comunicação carrega um conjunto de interesses no campo da saúde, tais como políticos, empresariais, grupos industriais, corporativos e sistemas de saúde.
Entendo que no caso dos interesses corporativos, o exemplo estadunidense é educativo: sabedores de que a ampliação do uso da modalidade de telemedicina era inexorável, a Federação dos Conselhos Médicos Estaduais (FSMB) lidera, mesmo com incompreensões corporativas, todo um processo para sua liberação de forma controlada no território americano, inicialmente nas áreas remotas, em seguida no programa Medicaid e posteriormente pelos prestadores privados.
Todavia, um dos elementos centrais dessa discussão pela FSMB foi a questão dos valores, estranhamente ausentes nos debates liderados pelo CFM: na maioria dos estados americanos a legislação negociada pela FSMB determina que a telemedicina seja considerada uma modalidade de prestação de serviço privado igual ao serviço presencial no tocante ao reembolso pelos usuários e seguradoras de saúde.
Ao invés de remar contra a maré de interesses, que são muitos, a classe médica não deveria liderar esse processo de uma forma mais sistêmica, incluindo a sua preocupação de evitar a “vulgarização da oferta de consultas online a baixo preço”, que pode acelerar a fragilização cada vez mais frequente do SUS?
Caro Antônio, não sei se há uma ‘classe médica’ com interesses unívocos nessa maré que você está identificando. Há médicos profissionais liberais, ainda no modelo antigo da profissão, que pensam no sistema de pagamento liberal, mas isso está se extinguindo. Isto ficará com uma pequena parcela que atende à elite da população. A grande maioria já foi capturada pelas estruturas das corporações, seja nos consultórios que dependem de planos de saúde, seja nos hospitais. Esse grupo ainda não percebeu, ao meu ver, a transformação do pagamento “fee-for-service”, típico da medicina industrializada do final do século XX, para o modelo baseador em valor. Este, que avança sobre o nosso sistema, tem uma leitura complicada do ponto de vista do profissional individual, depende de grandes e complexas estruturas de faturamento, típica da linguagem financeira. Quando a ‘medicina financeira’ tomar o espaço do modelo ainda industrial do país, não teremos mais o profissional liberal como vemos hoje. Ele estará totalmente dependente de estruturas corporativas que o coloquem em contato com o cidadão – ‘consumidor’… e, nesse momento, serão os interesses do mercado de TI que vão determinar o grau de consumo dos usuários. Exatamente como faz a indústria de medicamentos. É o que penso.
Os médicos que estão fora desse modelo e mais diretamente ligados ao SUS escapam da lógica de preços por atendimento e trabalham, mesmo que informalmente, como uma carreira de Estado. Nesse ponto, vai depender da política de governo…cederemos ao Banco Mundial, com seus pacotes universais de serviços de baixo custo? A TI pode servir para oferta de serviços nos moldes da nossa velha falta de equidade. Para uns poucos, agência ‘Prime’… para a maioria, Caixa Eletrônico…