O que não foi publicado na The Lancet – por Alfredo Guarischi

A cloroquina (CQ) foi sintetizada em 1934, e a hidroxicloroquina (HCQ), em 1950, medicamentos empregados por décadas para tratar malária, lúpus e artrite reumatoide. Seu uso em outras patologias ainda desperta debates acadêmicos nem sempre saudáveis.

Em 22 de maio, Mehra e colaboradores publicaram na revista The Lancet um estudo com mais de 98 mil pacientes com Covid-19 hospitalizados ( https://www.thelancet.com/pdfs/journals/lancet/PIIS0140-6736(20)31180-6.pdf). O desfecho clinico de 96032 pacientes foi analisado. Sua conclusão principal foi que os 14 mil pacientes tratados com HCQ ou CQ, quando usadas isoladamente ou associadas a um antibiótico macrolídeo, redundou na diminuição da sobrevida hospitalar, aumento de arritmias cardíacas, tempo de internação no CTI e uso de ventilador mecânico. O grupo controle, não randomizado, foi de 81mil pacientes que não receberam o tratamento experimental.

Ora bolas, diante de uma conclusão tão enfática, por que comentar o artigo que foi manchete até da grande imprensa, que chegou a publicar que é hora de deixar essas drogas descansarem?

Respondo: porque faltaram importantes informações no artigo.

Um grupo de 852 pacientes, por terem feito uso da medicação experimental por mais de 48 horas antes da admissão hospitalar, não teve o desfecho de seu quadro analisado. Esse grupo representou 38% do total dos pacientes excluídos. Se estivessem na análise, aumentaria em 17% o número total de pacientes tratados experimentalmente. Será que o uso por um tempo maior antes da internação teria impacto no desfecho clínico? Por que não publicaram, até em separado, o resultado desse grupo?

No dia seguinte da publicação on-line, escrevi um e-mail para o autor principal, Dr. Mehra, solicitando sua ajuda para entender melhor o artigo. Em menos de duas horas, recebi sua resposta: “Great questions but difficult to do since this is mostly a hospitalization database. I wish you the best. Mandeep R. Mehra, MD, MSc, FRCP (London). Executive Director, Center for Advanced Heart Disease. Professor of Medicine, Harvard Medical School. Editor in Chief, The Journal of Heart and Lung  Transplantation.” Em tradução livre: “Ótimas perguntas, mas difíceis de responder, pois esse banco de dados é principalmente relacionado a hospitalização. Desejo-lhe tudo de bom.”

Sua resposta, apenas horas depois, mostra seu respeito às dúvidas científicas. Como está no artigo publicado, os autores reconhecem a necessidade de “confirmação urgente dos ensaios clínicos randomizados”.

Está correto. Sua publicação tem falhas metodológicas, apesar do uso de diversas ferramentas estatísticas para mitigar os problemas relacionados a estudos retrospectivos. Não sabemos a real diferença e qualidade do tratamento médico empregado nos 617 hospitais escolhidos, em seis diferentes continentes, assim como a uniformidade da coleta dos dados. Dados clínicos obtidos de prontuários eletrônicos e com codificações distintas sofrem distorções, mesmo com a utilização de sofisticados filtros estatísticos. Outro ponto preocupante é que a dose das drogas experimentais (para essa nova doença) utilizada não foi uniforme, e, em média, foi 50% maior do que a utilizada no tratamento das doenças para as quais já estão cientificamente aprovadas.

The Lancet, fundada em 1823, faz parte do seleto grupo de revistas médicas nas quais somente artigos revistos e aprovados por um corpo editorial de especialistas são publicados. Apesar disso tudo erram.

A revista inglesa, referência mundial, demorou 12 anos para reconhecer como fraudulento o estudo publicado que ligava a vacinação contra sarampo, caxumba e rubéola (MMR) com o aparecimento do autismo. Somente em fevereiro de 2010 afirmou que “agora está claro que vários elementos do artigo publicado em 1998 eram incorretos”. Mas o desastre contra a ciência já estava feito. O movimento mundial antivacina cresceu, resultando no ressurgimento de doenças.

Há muitas questões em relação ao tratamento na fase inicial dessa nova e ainda desconhecida doença, que só serão respondidas com estudos científicos. Não sabemos qual o real impacto de medicamentos administrados em sua fase inicial, como o do uso de antivirais caríssimos, que já permitiram lucros enormes aos detentores de suas patentes nas bolsas de valores, ou de fármacos antigos e baratos (HCQ e alguns vermífugos).

Apesar da qualidade profissional dos seus autores e da The Lancet, esse artigo é mais um que deva ser interpretado com ressalvas. Pode estar correto, mas os dados publicados não corroboram a conclusão.

Seria interessante saber como os dados de todos os 96.032 pacientes, hospitalizados no período de 20 de dezembro de 2019 até 14 de abril de 2020, puderam ser revistos e aprovados pelo corpo editorial de especialistas externos e serem publicados em 22 de maio de 2020.

A ciência precisa de metodologia para não falhar; os pesquisadores e as revistas médicas não deveriam ter pressa. Com isso o lucro social seria maior.

 

Alfredo Guarischi, médico